Cultura

“O mundo não tem mais lugar para mulheres como Lídia”, diz Malu Galli, sobre sua personagem em “Amor de Mãe”

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Foto: Bruna Sussekind

Malu Galli, atriz, 48 anos, 30 de carreira, casada há 20 com o artista plástico Afonso Tostes, com quem tem um filho de 18, Luiz. Só aí já dá uma bela história, afinal – como foi dito – são 30 anos de carreira. Mas Malu quer mais, muito mais.

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Além de atriz, produtora e diretora de teatro [sua alma artística], ela também escreve. Autora da peça de teatro de sucesso “Marta, Rosa e João”, ela agora está concentrada em uma série sobre a arqueóloga Niède Guidon.

Com fortes ideais feministas e defensora de classes menos privilegiadas, como grupos LGBTQ+, Malu tem um discurso forte e não se importa sobre o que vão pensar sobre ela, mas sobre o que não vão pesar, por isso procura sempre que possível se posicionar.

“Eu não sou ligada a nenhum movimento, nenhuma ONG ou instituição, mas eu procuro estar conectada com o pensamento e com as pessoas que estão fazendo, atenta, para me manifestar sempre que eu acho necessário. Eu acho que as redes sociais são perigosas nesse sentido, mas elas são uma importante plataforma de fala.”

Atualmente isolada em sua quarentena com o marido e o filho em um sítio perto de Visconde de Mauá, Rio de Janeiro, ela topou falar com RG e jogou o verbo em diferentes assuntos, como o posicionamento da política frente às artes, por exemplo: “Eu acho que a gente está vivendo uma guerra, não assumida em palavras, mas assumida em atitudes. Esse desmonte da cultura é real, ele está sendo feito em atitudes e medidas, então vemos que é uma estratégia mesmo do governo de calar a cultura.”

Leia a seguir íntegra da entrevista de RG com a artista.

Foto: Bruna Sussekind

Você já trabalhou com outra coisa?

Não. Ei comecei a fazer teatro muito cedo, aos 10 anos, na Escola de Tablado. Eu sempre soube que eu queria ser atriz, desde criança. Eu fiz cinco anos no Tablado, durante o ensino médio eu fiz um curso profissionalizante de teatro, então quando me formei [no ensino médio] já era atriz profissional. Mas, claro, no início da carreira nem sempre eu conseguiu me sustentar como atriz, então paralelamente à arte trabalhei em loja.

Durante muito tempo eu vivi fazendo teatro, e como não dava dinheiro eu fazia muita publicidade, na época. Eu vivi uns dez anos de publicidade e vídeos institucionais, ou seja, eu dava um jeito de me virar, mas, ainda assim, dentro da profissão.

E, recentemente, digo isso porque minha carreira é muito longa, já são 30 anos, comecei a abrir um pouco o leque, mas dentro do espectro da carreira. Eu comecei a produzir, dirigir e, agora, a escrever.

Foto: Bruna Sussekind

Como surgiu essa ideia de escrever “Marta, Rosa e João”? E com foi a receptividade do público?

A experiência foi maravilhosa. A minha trajetória sempre foi construindo dramaturgia em sala de ensaio, criando totalmente a narrativa ou desconstruindo clássicos. Então de alguma forma eu sempre pensei a história, os diálogos, como atriz, improvisando, ou mesmo trazendo ideias, levantando questionamentos a respeito da narrativa. Mas eu nunca tinha sentado para escrever no meu computador. Como minha última peça foi “Nômades”, que produzi com Mariana Lima e Andréa Beltrão, e já estava há algum tempo sem fazer teatro, eu estava com muita vontade de voltar. E é sempre aquela questão: qual texto? Aí o meu marido perguntou por que você não escreve? E eu respondi que não escrevia. Mas acabei escrevendo e o texto virou um livro pela editora Cobogó.

Para escrever, eu parti de um jogo de tarô. Eu pensei que a primeira cena da peça seria uma sessão de tarô, quando as cartas seriam tiradas todas as noites. Então eu resolvi escrever cada cena associada a uma carta, o que geraria uma peça completamente diferente por apresentação, assim como a sequência das cenas, e isso me motivou, foi muito estimulante para mim. Quando eu comecei a escrever foi um fluxo muito intenso, muito criativo. Demorei alguns meses porque você vai mudando, trocando, melhorando. Foi uma experiência muito bacana e parece que me despertou para um lado que eu sempre tive, mas que eu colocava muito no meu trabalho de atriz. Agora eu estou escrevendo uma série.

E cinema? Você já fez muitos filmes, e há dois que em breve estarão despontando por aí, que são “Propriedade Privada” e “Dispersão”. Fale um pouco sobre os seus papeis nessas obras.

“Propriedade Privada” foi meu primeiro filme de terror, nada de susto, de monstros, é um suspense psicológico, que eu fiquei muito feliz de fazer. Nós ficamos numa fazenda, na divisa de Alagoas com Pernambuco, por dois meses, toda a equipe. O filme se passa em 24 horas. É a história de uma mulher que vai para essa fazenda com o marido, cuja família ela mal conhecia. Ela estava vivendo um trauma, em função de um assalto. Então esse marido leva ela para passar um tempo nesse engenho, onde está tendo um levante dos funcionários porque a fazenda está sendo vendida, e tudo vai se tornando um caos, até que ela termina aprisionada dentro de um carro, onde fica quase o filme inteiro. É uma obra que eu quase não tenho texto, e toda a história é contada por meio das ações dela. Eu estou muito curiosa para ver esse filme nas telas. O Daniel Bandeira, que é o diretor, está montando. É um filme político, dessa nova vertente do cinema que se utiliza do cinema de gênero como alegoria para falar das questões sociais.

Já o “Dispersão”, que é um filme do Bruno Vianna, foi feito no Rio. O Bruno, há alguns anos, criou ”Ressaca”, cuja edição era feita ao vivo na sala de cinema. Agora ele foi além, ele usa um algoritmo e um app para que a plateia baixe e navegue durante a exibição do filme, e a interação do público nesse aplicativo vai determinar a edição do filme ao vivo.

“Dispersão também é um filme bastante político, que fala das manifestações de 2013. A minha personagem é uma jornalista, uma âncora de TV, cuja posição é contrária a tudo o que está acontecendo, mas o filho dela é um black bloc. Agora, o resultado final vai depender mesmo do público.

Como você o momento atual do Brasil, quando o governo, quando não boicota, emprega tão pouco incentivo à arte, à cultura?

Eu acho que a gente está vivendo uma guerra, não assumida em palavras, mas assumida em atitudes. Esse desmonte da cultura é real, ele está sendo feito em atitudes e medidas, então vemos que é uma estratégia mesmo do governo de calar a cultura. É muito triste, porque o Brasil estava em um momento brilhante, de muita produção, extremamente criativo, muito otimista, o mercado se alargando. Estávamos vendo gente muito jovem produzindo, levando cultura à periferia, que também estava produzindo coisas, se democratizando. E isso foi ceifado. Daqui a pouco a gente vai ver o deserto cultural que o Brasil vai ser lançado.

Foto: Bruna Sussekind

Você é feminista e claramente uma defensora do movimento LGBTQ.

Eu não sou ligada a nenhum movimento, nenhuma ONG ou instituição, mas eu procuro estar conectada com o pensamento e com as pessoas que estão fazendo, atenta, para me manifestar sempre que eu acho necessário. Eu acho que as redes sociais são perigosas nesse sentido, mas elas são uma importante plataforma de fala. Existem coisas tão radicais acontecendo no Brasil, que se você tem uma voz, acho que você deve se colocar, porque é importante, não dá para se calar diante de algumas coisas que estão acontecendo. Mas também não dá para ficar falando sobre tudo, senão você acaba esvaziando seu próprio discurso. Então eu procuro me colocar quando acho absolutamente necessário.

Em relação ao feminismo, tem essa luta pelos direitos iguais. Tem um dado muito grave no Brasil que é o feminicídio, que é a cultura do estupro e a cultura da morte. Então, primeiro eu acho que a agente precisa cuidar para que as nossas mulheres parem de morrer, que as mulheres pretas parem de morrer na periferia e que parem de ser estupradas. Isso é o mais urgente. Porque se a gente ainda está nessa, como é que vamos ter direitos iguais? A gente tem de estar junto e tem de se colocar. Eu sinto que podia fazer muito mais do que eu faço. Mas eu questiono o ativismo político só online, no Instagram e no Facebook. Eu acho que isso te dá uma pseudo tranquilidade, porque você está falando só para a sua bolha. Não adianta ser ativista de internet, a gente tem que pôr a mão na massa. E dá para fazer isso com pequenas coisas, com sua diarista, seu porteiro.

Como que você está lindado com o coronavírus? Você achou que chegaria a tanto, ao ponte de a Rede Globo interromper as gravações?

Foi tudo muito rápido, muito impactante. Eu posso falar por mim, a gente ouvia as notícias da China, da Itália e parecia que ou não ia chegar ou que chegaria com menos gravidade. A Impressão é de um tsunami, em uma semana tudo mudou, você foi sequestrado da sua vida, a gente está refém. Eu estou falando com você aqui do meio do mato, isolada, perto de Visconde de Mauá. A cidade está vazia, as pessoa em casa, eu nem sei quando eu vou voltar. Mas como é uma coisa que está acontecendo no mundo inteiro, isso pode gerar uma reflexão muito interessante, porque todo mundo está em casa, obrigado a parar suas atividades, a mudar seu estilo de vida, seu cotidiano, a repensar o que é realmente essencial, a conversar, porque muitos estão em um mesmo ambiente. Isso tudo é um ensinamento, eu acredito muito nisso, acho que as coisas não acontecem por acaso. Agora, tem uma perspectiva muito ruim para o Brasil nos próximos tempos. Os economistas dizem que virá uma recessão forte, desemprego, que as pessoas vão passar necessidades gravíssimas, tudo é apavorante demais. Fora o sistema de saúde em colapso completo, porque já vinha em colapso. Mas eu acho que a gente como humanidade vai sair mais fortalecido disso.

Agora vamos falar da Lídia, sua personagem em “Amor de Mãe”, ela começa com uma socialite metidona, que vai ganhando vida, se humanizando, de uma certa forma, com problemas inerentes a tanta mulheres, como a traição por parte de um cafajeste, a perda de um filho, o alcoolismo. Como foi construir essa personagem e como é viver na TV uma mulher tão intensa?

Tem sido muito legal, eu estou muito feliz, com a personagem, com o trabalho, com a novela. Primeiro que quando o Zé Luiz (José Luiz Villamarim, diretor artístico) me convidou eu fiquei muito feliz porque eu gosto muito dele e já havia trabalhado com ele há muito tempo. A Manuela (Manuela Dias, autora) eu tinha trabalhado quando ela era uma garota, e gostei muito e segui acompanhando o trabalho dela como autora. Aí, depois, aquele elenco maravilhoso, com várias pessoas com as quais eu já trabalhei, e outras com quem eu tinha vontade de trabalhar, como Regina Casé, enfim, é um deleite.

E vem a Lídia, uma personagem que em um primeiro momento podia passar a impressão de um estereótipo, mais uma perua, mais uma socialite meio engraçada, meio vilã, aquela mulher detestável. O Zé Luiz, desde o primeiro momento, bateu numa tecla que foi muito importante, que era o fato de humanizar essa mulher. É uma novela muito realista, que fala dos brasileiros que estão aí batalhando, de projetos pessoais, de encontros e desencontros, então não tinha muito espaço para uma socialite dos tempos antigos, tivemos que atualizá-la, deixando-a mais contemporânea, mais humana. A ideia era a de aproximar o público, de ele se reconhecer nela. Mesmo ela falando alguns absurdos, texto que são icônicos, bem da aristocracia carioca, decadente, em relação aos empregados, à criadagem, ela uns termos e tal. Mas ao mesmo tempo o publico está no quarto dela, vendo ela dormir debaixo da cama, vendo o melhor e o pior dela o tempo todo. Vendo aquela mulher glamorosa recebendo a sociedade nos salões e daqui a pouco uma mulher desesperada, bêbada. Posso mostrar todos os lados dela, e o público se identificou. É muito prazeroso saber que ela é odiada e amada.

Foto: Bruna Sussekind

A Lídia tem uma postura politicamente incorreta muitas vezes, nas falas, com a Lurdes (personagem de Regina Casé), que chega a ser engraçado. Como você vê o humor nesse papel? E isso tudo é mesmo para rir ou para pensar?

Pois é, isso é uma questão para mim. Como a gente queria humanizar, a gente não criticava aqueles absurdo que ela fala. E eu pensava, meu Deus, se eu não falar isso com alguma crítica, vai parecer que eu acho isso normal, esse comportamento, e eu su absolutamente contra esse tipo de preconceito. Na medida em que ela falava aquilo de uma forma absolutamente normal, parecia que eu estava normalizando a fala para a sociedade. E não é assim, né? Eu acho que no fim das contas conseguimos ter um pouco de humor, um pouco de crítica, mas ao mesmo tempo fica claro que para a Lídia aquilo tudo é muito natural. A novela tem uma crítica social muito grande. A Lídia é mais uma peça dessa herança escravocrata, uma mulher que não tem mais lugar no mundo contemporâneo.

Você curte moda?

Ah, eu gosto da beleza, gosto de design, de arte contemporânea, coisas bonitas. Mas eu não tenho uma ligação com a moda, saber quem são os costureiros, as últimas coleções. Eu não sou essa pessoa que compra revistas. Mas olha como eu sou antiga? Agora não tem mais esse negócio de comprar revista, agora é tudo online.

E beleza, você tem algum ritual?

Para falar a verdade, muito pouco. Eu sou um pouco preguiçosa com essas coisas, eu faço o que tem que ser feito minimamente. Eu gosto de me exercitar, algo que adquiri para a minha vida. Eu gosto de correr na areia, fazer pilates, consegui encontrar prazer nessa relação com a natureza. Mas também não consigo dedicar muitas horas do meu dia para isso, eu faço o básico e já quero mudar de assunto. Eu acho que é que nem internet, você tem que limitar o tempo gasto com determinadas coisas.

Tem algum projeto, algum sonho em pauta?

Eu tô com esse sonho bem forte agora que é de conseguir realizar essa série que eu estou escrevendo, sobre a vida de Niède Guidon, arqueóloga que luta há 40 anos pela preservação do Parque Nacional da Serra da Capivara, no Piauí. Ela é uma mulher que hoje está com 87 anos, chegou ao Piauí com 43, e dedicou a vida dela inteira quase a essa causa. É uma mulher maravilhosa, extraordinária, e um lugar extraordinário, importantíssimo, patrimônio da humanidade, um lugar que precisa ser preservado. Eu estive lá duas vezes e fiquei simplesmente arrebatada.

Outro projeto é esse sítio, de onde estou falando com você, que compramos recentemente. Quero fazer com que ele seja produtivo, não só a terra, que ele se transforme em um polo de cultura, mas ainda é muito embrionário.

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