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Artigo: endorfinize-se!

O exercício físico é uma ferramenta terapêutica valiosa, eficaz e promissora na composição do rol de estratégias de tratamento para pessoas com problemas relacionados ao uso de substâncias psicoativas. Juntamente com os benefícios à saúde conhecidos, a prática esportiva favorece o equilíbrio do funcionamento cerebral, melhora a autoestima, além de ser uma oportunidade para a formação de novas redes de relacionamento.

O exercício libera endorfinas”. Esse é o argumento mais ouvido pelas pessoas que procuram encontrar um elo entre esporte e prazer.  Muitos afirmam, ainda, que as endorfinas são as “drogas naturais” do organismo.  Dessa forma, o esporte poderia funcionar como uma espécie de substituto para aquela reação de êxtase e euforia (“high”) nunca mais encontrada desde o advento abstinência.  Há alguma evidência científica – nada além de “alguma” –, que parece corroborar essa concepção extática do esporte, um tanto lendária, que permeia o imaginário das sociedades contemporâneas sedentárias.

Em primeiro lugar, as beta-endorfinas são neurotransmissores do sistema nervoso opioide endógeno.  As funções desse sistema envolvem principalmente a modulação da resposta à dor, a regulação da temperatura corporal e a mobilização de substratos energéticos do organismo. Além disso, o sistema opioide é capaz de influenciar diretamente o sistema de recompensa, participando assim da modulação dos estímulos de prazer e reforço.

As beta-endorfinas são liberadas durante o exercício máximo e anaeróbico, em resposta à ampla liberação de lactato – provocador de dores musculares e câimbras – ou após um período prolongado de exercícios aeróbicos.  Sua presença, de fato, está ligada à euforia que o atleta sente durante os exercícios físicos, mas esse fenômeno é muito mais amplo, complexo e interessante do que a mera correlação entre o a prática esportiva e um modo saudável e politicamente correto de “se drogar”.

O consumo de álcool – assim como a prática esportiva – aumenta o nível de beta-endorfina, certamente um dos elos neurobiológicos das reações de euforia e prazer relacionadas ao uso desse produto – vale relembrar, o sistema opioide é capaz de modular o sistema de recompensaO uso episódico ou moderado de bebidas alcoólicas provoca um aumento significativo de beta-endorfina no sistema nervoso.  No entanto, quando esse consumo se torna crônico, o sistema opioide desenvolve mecanismos neuroadaptivos que reduzem a produção de beta-endorfina, diminuindo assim o impacto dela sobre o funcionamento normal do organismo.

Como resultado, o cérebro passa ter níveis reduzidos de beta-endorfina durante a abstinência, deixando-o mais sensível à fissura pelo álcool e aos sintomas de abstinência, incluindo sintomas de natureza ansiosa e depressiva.  Desse modo, fica ainda mais difícil dizer “não” aos “gatilhos etílicos” e às oportunidades de beber.

Por sua vez, a prática esportiva, com o subsequente aumento da concentração central de beta-endorfina, pode funcionar como uma fonte de estímulo à produção desse neurotransmissor entre usuários de álcool, especialmente durante as semanas iniciais de abstinência e tratamento.  O efeito comprovadamente positivo da beta-endorfina sobre humor pode ajudar a pessoa a melhorar sintomas depressivos ou ansiosos, primários ou secundários – comuns entre os dependentes de álcool e demais substâncias psicoativas.

Além disso o uso crônico de álcool ativa o eixo hipotálamo-pituitário-adrenal (HPA), o eixo relacionado respostas ao estresse ambiental.  A sensibilização desse eixo tem papel fundamental como precipitante de crises agudas em qualquer tipo de doença mental, especialmente frente a situações de estresse.  Mais uma vez, a prática esportiva não aumenta a atividade desse eixo, funcionando assim como uma “blindagem neuroquímica” em relação aos estressores psicológicos, tão presentes tanto como fatores de risco para o desenvolvimento, quanto como fatores de manutenção da dependência química.

Acontece que as vantagens da atividade esportiva para o tratamento da dependência química não se limitam ao modelo das endorfinas.  Há cada vez mais evidências – provenientes tanto de estudos em animais, quanto em seres humanos – que a atividade física é capaz de diminuir o interesse e a fissura pelos mais variados tipos de substâncias psicoativasentre elas a nicotina, a cocaína, a maconha, a heroína e as meta-anfetaminas. Além disso, aceleram a resolução de déficits cognitivos provenientes do consumo prolongado dessas.

Mais importante ainda:  animais e humanos previamente expostos à prática esportiva regular mostram-se mais refratários ao desenvolvimento de dependência se comparados aos seus similares sem esse histórico – a vida sedentária entre adolescentes é um fator de risco cientificamente demonstrado para o uso drogas ilícitas no início da vida adulta.

Tudo isso acontece porque o exercício – para muito além da ideia da endorfina – é capaz de modular a plasticidade do sistema de recompensa de forma direta, no sentido aposto às alterações provocadas pela dependência, contribuindo para a normalização das transmissões dopaminérgicas e glutamatérgicas.  Isso poderia explicar neurobiologicamente tanto os seus efeitos capazes de prevenir, quanto de suprimir o desenvolvimento da dependência.

Exercícios aeróbicos como corrida, natação e ciclismo aumentam a oxigenação do córtex pré-frontal e estão relacionados a um maior controle inibitório e melhor processamento da memória e da atenção em poliusuários de substâncias psicoativas.  Além disso, esse tipo de atividade física está diretamente relacionado à redução significativa de fissura entre usuários de estimulantes – anfetaminas, cocaína e nicotina.  Tanto a melhora do controle do inibitório, quanto a redução da fissura parecem ganhar estabilidade e durabilidade, quanto mais frequente e prolongado forem de exposição ao exercício físico.

Além de atuar antagonicamente em relação aos mecanismos da dependência no cérebro, a prática esportiva é capaz de estimular a formação de novos neurônios – processo conhecido por neurogênese – bem como de ampliar a rede de conexões dendríticas e sinápticas – especialmente nas regiões afetadas pelo consumo prolongado de substâncias psicoativas, como o centro da memória (hipocampo) e o sistema de recompensa.

Dessa forma, o exercício pode modular tanto as funções cognitivas, quanto os comportamentos de busca de drogas, além de ser uma velha fonte de prazer endorfinizante conhecida de todos.  Dentro de uma perspectiva evolutiva, os humanos se adaptaram para suportar exercícios aeróbicos prolongados devido à agilidade e a rapidez de suas presas. De alguma forma, então, mapear o mundo em busca de recompensas e persegui-las à exaustão física antes de abatê-las tornaram-se práticas intimamente relacionadas, apartadas apenas a partir dos tempos modernos com seus rituais e cultos “sedentaristas”.  Provavelmente ao longo da evolução, ficou estabelecido que estar em movimento era conditio sine qua non para o desenvolvimento e para manutenção de um cérebro saudável – e um sinal dessa natureza e importância não pode ser simplesmente ignorado ou perdido.  Endorfinize-se!

Marcelo Ribeiro, psiquiatra, membro do Programa de Pós-graduação do Departamento de Psiquiatra da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), docente do Curso de Medicina da Universidade Nove de Julho (Uninove), diretor do Centro de Referência de Álcool, Tabaco e outras Drogas (Cratod) da Secretaria do Estado da Saúde de São Paulo, presidente do Conselho Estadual de Políticas sobre Drogas de São Paulo (Coned).  

 

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