ARTIGO – E se eu quiser falar com Deus?
Saúde mental e religião têm um longo percurso conjunto, nem sempre harmônico, desde os tempos em que o homo se tornou sapiens – quem sabe até antes disso. Para encurtar essa longa história, essa relação, que durante o neolítico e a Antiguidade foi tratada como o resultado de manifestações de forças sobrenaturais – ora divinas, ora obra da ação de maus espíritos – chegou à Idade Média Ocidental demonizada. Para o maravilhoso medieval todas as formas de adoecimento, mental e físico, tinham raízes na perda do Paraíso por Adão e Eva, cuja traição divina atirou a humanidade em um mundo de corrupção e decadência.
Os cristãos europeus que viveram entre o quatrocentos e o ano mil eram em grande parte analfabetos, famélicos e desnutridos, destroçados por invasões bárbaras e permanentemente infectados por pragas. Para eles, somente os mistérios da Salvação e os milagres oriundos do Cristo, revivos por intermédio das epopeias e relíquias dos santos e mártires, seriam capazes de purificar e dar sentido suas existências miseráveis; somente eles poderiam fazê-los suportar tamanho sofrimento.
Nesse contexto, a doença mental, na concepção do cristianismo medieval, era uma expressão da vontade divina, devendo dessa forma ser curada sob os auspícios da religião. O exorcismo foi o método escolhido e desenvolvido para esse propósito desde os primeiros tempos do cristianismo ocidental. Mas as soluções que ainda intrigam o Ocidente vieram a partir de 1200, com o advento dos hospitais para o confinamento de enfermos e as “colônias de lunáticos”.
Ambos nasceram sob as bênçãos do cristianismo. Os hospitais – inicialmente mais parecidos com hospedarias livres de cuidados médicos –, nasceram da benemerência de senhores de terra, após vivenciarem alguma experiência numinosa ou do trabalho santificado de personagens da Igreja, como do padre espanhol Joan Gilabert Jofré (1350–1417), fundador da primeira instituição “psiquiátrica” da Europa e do português Juan Ciudad (São João de Deus, 1495-1550), fundador da Ordem dos Irmãos Hospitaleiros (Charités), ainda existente em mais de cinquenta países da atualidade.
Outro fenômeno interessante nesse período surgiu a partir a hagiografia de Santa Dymphna e de Santo Gereberno. Dymphna era uma princesa do reino irlandês de Oriel, do século VII, filha de rei pagão Damon e mãe cristã. Com a morte de sua genitora, seu pai ensandecido pelo pesar, desejou incestuosamente desposá-la e coroá-la rainha. Escandalosamente contrariada, contando o apoio do seu sacerdote, Gereberno, a virgem de quatorze anos cruzou o Canal da Mancha em fuga e se escondeu no pequeno vilarejo de Gheel – na Bélgica contemporânea. No entanto, o monarca obcecado acabou localizando o paradeiro da filha e se dirigiu até o vilarejo. Frente à recusa derradeira da princesa, decepou-lhe a cabeça e assasinou Gereberno.
Com o passar do tempo a história de Dymphna chamou a atenção dos acometidos pela insanidade mental, que passaram a peregrinar para o vilarejo de Gheel, em busca de curas milagrosas. A partir de meados do século XIV, a virgem foi santificada e rituais de exorcismo foram desenvolvidos pelo clero local, cada vez mais requisitado. Aqueles nos quais a loucura insistia em persistir eram acolhidos por famílias de camponeses, transformando por séculos aquele pequeno vilarejo numa “colônia de lunáticos”, assim como se em outras cidades europeias como Larchant (França) e Nuremberg (Alemanha) – com o passar dos séculos e até os dias de hoje, Gheel se transformou em modelo e exemplo cuidados ao doente mental em ambiente comunitário.
Acontece que o Renascimento (1400-1600), em princípio de forma tímida e elitista, já se encontrava em marcha na Europa feudal, desencadeando uma longa luta entre a ciência e o dogma. Essa nova maneira de ver o mundo, assentada sobre os princípios do racionalismo e do humanismo, em franca expansão e em busca de um lugar de destaque no pensamento e nas grandes tomadas de decisão da humanidade, entrou em choque com a autoridade da Igreja. O aumento paulatino de sua influência mudaria para sempre a concepção ocidental da “loucura”.
Por volta do século XV, várias concepções de “loucura” conviviam entre si, numa Europa que se urbanizava a passos largos. Coube ao Direito – e não a Medicina – definir do que se tratava a “insanidade”, com o intuito de distingui-la dos mendigos, dos criminosos e dos aleijados. A ideia de que o “louco” tinha menos responsabilidades legais e, na mesma proporção, em que tinha menos direitos é um constructo dos juristas desse período.
De modo que no século seguinte os “lunáticos” (lunaticke) já existiam legalmente em boa parte da Europa Renascentista. Esse também é o período em que as ‘hospitais-hospedarias’ foram paulatinamente se transformando em locais superlotados, mais parecidos com guetos, labirintos. Também é o momento em que serão trazidos pela primeira vez para a literatura sob a óptica racionalista, nas peças de Shakespeare e na odisseia de Dom Quixote de la Mancha. Visões e soluções seculares para um drama outrora eminentemente divino começaram a aparecer.
Mas será durante a segunda metade do século XVII, no apogeu das grandes monarquias absolutistas, que os hospitais finalmente darão lugar aos manicômios gigantescos. O magnífico edifício do ‘novo’ Hospício de Bethlem (1676), em Londres – originalmente fundado no início do século XIII –, bem como o Asilo de Bicêtre (1642) e o Hospital Salpêtrière (1656), ambos em Paris, foram construídos nessa época. Eis a nova mentalidade: os loucos devem ser tratados humanitariamente, mas quanto menos contato tiverem com os lúcidos, melhor.
Acontece que o contrário disso aconteceu. Entre 1650 e 1790 os hospitais e asilos públicos franceses estavam abarrotados com dezenas de milhares de presos políticos, enquanto na Inglaterra, manicômios privados se tornaram um negócio lucrativo para remover ‘com praticidade’ insanos – e outras vezes membros moralmente recrimináveis – de famílias respeitáveis da alta sociedade britânica. Asilos de caridade também surgiram para cumprir essa função. Ao invés do “bom tratamento”, depósitos humanos de loucos nus, acorrentados ou vítimas de experimentos bizarros começaram a ser estampados em jornais, por artistas plásticos ou se tornaram temas de peças de teatro e óperas.
Nesse contexto, na virada para o século XIX, o médico e partidário da Revolução Francesa, Philippe Pinel (1745-1826) e o quacker britânico William Tuke (1732-1822) propuseram novas maneiras de tratar o “doente mental”, livre de correntes ou métodos de tratamento restritivos – o chamado “tratamento moral”, de Pinel. Dentro do espírito anticlerical da Revolução, Pinel também pregou o fim da influência religiosa no tratamento da doença mental, ficando a Psiquiatria como sua única referência científica. O racionalismo, nascido na Itália Renascentista, quase quinhentos antes, parecia ter eliminado a religião da saúde mental para sempre.
Mas certamente ela continuou a existir, tanto como forma de cuidado, dentro das ordens hospitaleiras, quanto como método curativo, a partir das práticas exorcismo, que continuaram a existir em menor escala. A transição para o século XIX também é o momento em que filósofos e pensadores alemães e franceses aventaram que o campo genericamente denominado como “loucura” pudesse ser, ao menos em parte, a expressão de outros fenômenos do psiquismo ou mesmo manifestações espirituais – foi a época de surgimento, na França “magnetismo animal” (Franz Anton Mesmer, 1734 – 1815), do “hipnotismo” (Marquês Armand Marie Jacques Chastenet de Puységur, 1751-1825) e do “Espiritismo” (Hippolyte Rivail, o Allan Kardec, 1804-1869).
De todo o modo, século XIX foi aquele em que o “modelo manicomial” sob a égide da Psiquiatria se espalhou por toda a Europa e Estados Unidos. Ele ficaria para sempre conhecido como a “era do grande confinamento”, tendo as grandes instituições asilares moldadas por Pinel e Tuke se disseminado como método de tratamento preferencial das famílias e dos modelos de saúde pública ocidentais para lidar como os “insanos”.
Manicômios de arquitetura grandiosa floresceram em todas as regiões da Europa e dos Estados Unidos. Legislações específicas para a sua criação e os modelos de tratamento baseados nos métodos de Pinel e Tuke foram instituídos nacionalmente. Algumas vozes isoladas, como a psiquiatra britânico Henry Maudsley (1835-1918), questionaram o manicômio como local adequado de tratamento, instituindo um modelo hospitalar apenas para pacientes em crise, com atendimento ambulatorial para os demais. Um visionário cento e cinquenta anos avante do seu tempo.
Em meados desse mesmo século, o psiquiatra já se transformara em um especialista de enorme prestígio, dirigindo hospitais que mais se assemelhavam a castelos, integrando sociedades e publicando em revistas científicas criadas por eles. Parecia que muito em breve, um elo entre os nervos e as doenças mentais seria encontrado: as doenças capazes de causar graves sintomas mentais, como a sífilis e o alcoolismo pareciam apontar para esse sentido. Esse é o período em que as principais descrições nosológicas foram feitas com maestria e precisão pelos psiquiatras germânicos. Na virada para o século XX, Jean-Martin Charcot (1825-1893) associou a religião com a histeria e a neurose. Deus parecia cada vez uma solução cada vez mais improvável para a cura da insanidade.
Mas o século dos manicômios não resistiu ao século XX – pelo menos no mundo desenvolvido. Em primeiro lugar, pelas abordagens demasiado organicistas e as terapias oriundas desses modelos, tais como a “malarioterapia” ou terapia da febre (1927), a terapia por choque insulínico (1927), eletroconvulsoterapia (1930) e a lobotomia (1935); em segundo, pelo confinamento prolongado dos doentes, que além da doença, começavam a apresentar sinais de perda emocional e intelectual com a realidade – o “hospitalismo”; Por fim, os movimentos que lutavam por igualdade e pelo retorno dos direitos civis no pós-guerra começaram a enxergar o “louco” – visto por eles como um ente trancafiado em instituições labirínticas, à mercê de procedimentos bizarros e longe dos olhos da sociedade – como o paradigma do ser humano oprimido, silenciado e “suicidado” pela sociedade, nas palavras de vários expoentes do pensamento ocidental antipsiquiátrico como Antonin Artaud, Ronald Laing, Thomas Szasz, Michel Foucault, Gilles Deleuze e Franco Basaglia .
Durante a II Guerra Mundial, dentro da tradição psiquiátrica, o diretor do Maudsley Hospital (Londres), Aubrey Lewis (1900-1975), e o psiquiatra Maxwell Jones (1907-1990) começaram a acompanhar soldados traumatizados de guerra em uma escola abandonada em Mill Hill, norte de Londres. Partindo de um modelo asilar, para a estruturação de uma vila – Maxwelltown –, na qual os pacientes foram convertidos em moradores, tinham aulas sobre a fisiologia da sua moléstia e participavam da gestão do local – com base em princípios comunais e democráticos – Jones inaugurou as bases teóricas e práticas do modelo de comunidade terapêutica. Vinte anos depois, esse modelo seria adaptado para a recuperação de usuários de substâncias psicoativas: Synanon (1958), em Santa Mônica, na Califórnia (EUA), integrando referenciais de espiritualidade a partir dos 12 passos e de preceitos do cristianismo. O mesmo chegaria a Europa, com reformulações, a partir de 1968.
Conforme a antipsiquiatria e a contracultura avançavam, a Psiquiatria também saiu em busca de transformação. Em primeiro lugar, aceitou fortemente a influência da psicoterapia, principalmente da psicanálise de Sigmund Freud (1856-1939) – que não via igualmente com bons olhos a influência da religião sobre o psiquismo. Em segundo, nos países ricos, entre 1950 e 1990 – especialmente com o advento da psicofarmacoterapia efetiva – a instituição asilar foi transformada no hospital psiquiátrico contemporâneo, destinado apenas para o manejo das situações de crise. Em terceiro, novos modelos e ambientes de atenção em saúde mental foram desenvolvidos, preferencialmente de natureza multidisciplinar e baseados na comunidade. Em quarto, novos modelos e métodos psicológicos e psicoterápicos foram desenvolvidos – especialmente a psicoterapia cognitivo-comportamental em suas diferentes modalidades e aplicações específicas. Em quinto, aprimorou e uniformizou o seu código diagnóstico. Em sexto, se aproximou das questões socioculturais capazes de impactar e adoecer o psiquismo, como a violência urbana, o racismo, a pobreza e o desemprego.
Na transição para o ano 2000, parecia que a concepção do ser humano biopsicossocial finalmente seria tratada em base reais: a genética e a moldagem epigenética pelo ambiente sociocultural, a farmacoterapia cada vez mais complexa e específica, os estressores psicológicos e a psicoterapia, a psicologia e a psiquiatria social. Tudo parecia se encaixar, nesse novo ambiente que preconizava as ações interdisciplinares e comunitárias. Foi quando a espiritualidade, para espanto de muitos “bios”, de muitos “psicos” e de muitos “sociais” voltou a ganhar protagonismo dentro da saúde mental.
Na verdade, ela nunca parou de influenciá-la. As ordens hospitaleiras católicas nunca deixaram de existir – pelo contrário, se espalharam por dezenas de países e ao longo do século XX se aproximaram das práticas da psiquiatria e da psicologia. Os hospitais psiquiátricos de orientação kardecista começaram a surgir no Brasil a partir da era Vargas e se multiplicaram no pós-guerra. As comunidades terapêuticas brasileiras católicas, protestantes, espíritas, budistas – e mais recentemente, ligadas a religiões afrodescendentes, como a umbanda são um fenômeno do final do século XX. Por fim, abordagens de cunho religioso que utilizam substâncias psicoativas como sacramentos religiosos – como a ayahuasca / santo daime – ou alucinógenos psicodélicos – como a ibogaína e a psilocibina – administrados nos moldes de rituais pagãos, vem ganhando espaço no tratamento de dependentes de substâncias psicoativas, especialmente nas últimas duas décadas.
Desse modo, é possível constatar que a religião e a fé estiveram fora da saúde mental mais na teoria do que na prática. No entanto, o seu retorno como instrumento terapêutico formal assustou, ou mesmo trouxe indignação a muitos setores da intelectualidade contemporânea: subitamente, havia uma impressão de que séculos de esforço racionalista e humanista, erigidos em bases científicas sólidas haviam caído por terra. Até mesmo o Estado laico e suas instituições pareciam estar ameaçados por essa nova ordem.
Afinal, falar com Deus é de fato importante? Se isso fosse procedente, ao admitir a presença da espiritualidade nas rotinas do “mundo laico”, como não se incomodar com a chamada “espiritualidade patológica”, presente no fanatismo e no fundamentalismo religioso, na conversão a seitas religiosas radicais ou falsos líderes religiosos? Como não achar temerário a exposição de pessoas vulneráveis a dinâmicas altamente danosas ao psiquismo, como as técnicas coercitivas de conversão, de reformulação do pensamento, de persuasão do comportamento e de controle da mente? Como garantir que a espiritualidade, ao invés de integrativa, não se transforme numa forma defesa psíquica para justificar a submissão ao outro ou para racionalizar a incapacidade pessoal de conquistar uma vida autônoma? Como evitar que se torne um instrumento de ofensa e de constrangimento alheio, na forma de críticas e de argumentos controladores de caráter moralista ou apelativos de conversão?
Mas que é a “espiritualidade” com a qual a saúde mental hodierna aceita conversar? Segundo o Royal College of Psychiatrist (RCP), a espiritualidade é universal e ao mesmo tempo única em cada pessoa, incluindo aqueles que não acreditam em Deus ou num “poder superior”. Nesse sentido, Carl Jung acreditava que o psiquismo humano possuía um dispositivo capaz de “ligar” consciente e inconsciente (religião = religar, do latim religere), fazendo com que a energia psíquica proveniente do inconsciente coletivo atingisse com êxito a consciência, contribuindo assim para sua progressiva ampliação e autonomia. Para Jung, esse dispositivo, que denominou “função religiosa”, é uma atitude inata do psiquismo humano, por meio da qual a consciência pode ser transformada pela experiência do numinoso – ou seja, do êxtase religioso.
De acordo com o RCP, a espiritualidade é uma dimensão distinta, potencialmente criativa e universal da experiência humana que emana tanto da consciência subjetiva interna do indivíduo, quanto dos grupos sociais e das tradições ancestrais. Pode ser vivenciada tanto a partir daquilo que é considerado íntimo, imanente e pessoal, quanto do que é transcendente, para além do eu. A espiritualidade é vivenciada como sendo de importância fundamental – desse modo, preocupada com questões como o significado e o propósito da vida, a verdade e os valores universais. Já a religiosidade, além das crenças pessoais encontradas na espiritualidade, inclui a envolvimento e o comprometimento com rituais e práticas vinculados a uma religião organizada.
Mais pragmático, o psiquiatra e professor da Harvard Medical School, George Vaillant, define a espiritualidade como “um amplo espectro de emoções positivas”. O mesmo pesquisador afirma que as religiões duradouras têm em comum três ingredientes: o amor, a formação do senso de comunidade e as emoções positivas: compaixão, perdão, esperança, alegria, fé, confiança, reverência e gratidão. Vaillant afirma que as emoções positivas “têm potencial de libertar o eu de si (…) Elas aumentam nossa tolerância, ampliam nossa moral e elevam nossa criatividade. Elas nos ajudam a sobreviver no tempo futuro (…); tornam nossos padrões de pensamento mais flexíveis, criativos, integrados e eficientes”.
Na mesma linha do Royal College of Psychiatrists, que entende a espiritualidade como algo inato, assim como Carl Jung, que defende a existência de uma “função religiosa” no psiquismo humano, Vaillant e outros autores acreditam que a espiritualidade tenha bases biológicas: o sistema límbico, que compreende, entre outras estruturas, o hipocampo – o centro da memória –, a amídala, além de prolongamentos para a região do córtex pré-frontal é a base anatômica de onde emergem as emoções positivas. Igualmente, o substrato neurobiológico da dependência química. O córtex pré-frontal – particularmente a sua porção denominada córtex orbitofrontal – faz a conexão entre a razão e o afeto. Ao longo do desenvolvimento humano, por meio da intensificação das conexões entre o sistema límbico e as regiões frontais, torna-se possível modular as emoções – e as experiências religiosas – que emanam dos centros cerebrais mais primitivos de modo cada vez mais harmonioso. Os traumas, a violência, a negligência, os maus-tratos e o uso precoce de substâncias psicoativas podem abalar e desorganizar esse processo.
Apesar da longa história contada nos primeiros parágrafos, a título de introdução, cabe afirmar preliminarmente que o retorno da espiritualidade à saúde mental não é sinal do ocaso do método científico aplicado à saúde mental, muito menos o triunfo de doutrinas cristã absolutistas ou fundamentalistas. Pelo contrário, trata-se de um sinal de amadurecimento intelectual do pensamento científico. A ideia da espiritualidade na saúde mental nada mais é do que o resgate de um fenômeno presente na psiquismo desde primórdios da humanidade, o qual, de alguma forma fora relegado ao segundo plano pela Revolução Científica (1500-1900): a autotranscendência, ou seja, a capacidade de uma pessoa se sentir conectada a “algo maior” do que o próprio eu, a partir da dissolução percebida da fronteira entre o eu e o outro. Esse “algo maior” podem ser os dogmas de uma determinada religião, um por do sol magnífico perante um vale exuberante, uma audição sinfônica extasiante, uma visita ao setor de pinturas do Romantismo do Museu do Louvre, o amor sublime que se sente por uma filha, ou mesmo a vivência eufórica com um estádio cheio de torcedores do seu time do coração.
Do ponto de vista da neurociência, os mistérios da autotranscendência, ao lado de outras experiências místicas, já foram identificados nas mais diversas regiões subcorticais e corticais do sistema nervoso central, incluindo tronco cerebral, os núcleos da base, o sistema de recompensa e os córtices frontal e parietal.
O córtex parietal posterior é região encarregada da percepção das relações espaço-temporais e, em particular, à representação do corpo humano no tempo e no espaço. Estudos com neuroimagem funcional têm observado que durante fenômenos espirituais como a autotranscendência, a meditação de atenção plena e a oração contemplativa há uma redução significativa da atividade neuronal nessa região. Como as práticas e experiências espirituais normalmente envolvem uma alteração percebida no tempo e no espaço para que haja um senso expandido de si em relação ao ambiente, acredita-se hoje que as alterações no funcionamento neurofisiológico do córtex parietal posterior sejam “o portal” de acesso às vivências espirituais dentro da psique humana.
Entender que a espiritualidade tem um lugar no cérebro humano não significa diminuí-la, tampouco instrumentalizá-la. Longe disso: serve apenas para demonstrar que o sistema nervoso possui “antenas” para o esse fenômeno, cuja função primordial parece ser a de “lavar”, de “renovar” o funcionamento psíquico como um todo, reconectar a consciência as suas matrizes ancestrais mais profundas, por meio do afrouxamento dos seus limites, pelo “aumento da porosidade” entre ela o mundo inconsciente (límbico) do psiquismo. Essa engrenagem essencial para o funcionamento adequado da psique talvez tenha sido “menosprezada”, “jogada fora” pela Ciência durante o justo embate que travou com o dogma meio milênio atrás. Desse modo, “encontrá-la” organicamente não se presta a nada além da atitude simbólica de resgatá-la cientificamente ou de salientar sua importância para o psiquismo, seja dentro de uma igreja, seja ao abraçar uma árvore, ao caminhar por um jardim zen-budista ou se ao deparar com uma pintura de Van Gogh.
A capacidade de transcender e se conectar por meio de emoções positivas é o que de melhor a espiritualidade pode oferecer ao tratamento da dependência química, ao processo de recuperação e ao desenvolvimento do ser humano como um todo. Mais uma vez, Vaillant faz um apanhado brilhante acerca do impacto dessas emoções para o psiquismo:
O autor define “fé” como sinônimo de “confiança”, “condição sine qua non para o altruísmo e o amor verdadeiro”. E segue: “A maioria das tradições religiosas desenvolveu rituais místicos e meditativos de silêncio, prece, dança, ingestão de substâncias sagradas ou jejum para intensificar a experiência emocional da confiança” – ou seja, para reforçar os laços afetivos que unem as pessoas a sua cultura e sua nossa ancestralidade. “A ausência de fé é o niilismo, não o ateísmo ou a descrença em um deus”, acrescenta.
Todos os mamíferos estão estruturados para o amor, uma vez que seus rebentos continuavam a depender da proteção adulta para sobreviverem. Desse modo, deve ser acima de tudo, um amor abnegado. “Amor significa vínculo, música, odores e o êxtase espiritual”, segundo o professor de Harvard, que encerra o capítulo sobre essa emoção positiva afirmando que “o desenvolvimento humano bem-sucedido envolve, em primeiro lugar, a absorção, em o compartilhamento e por último, a doação desinteressada de amor”.
Vaillant fala ainda da “alegria”, ou a capacidade de humana de se conectar com o outro, ou mesmo reconhecer o sofrimento e a dor. “A alegria é rir com a alma. (…) A felicidade substitui a dor, a alegria a abarca. (…) Alegria não é felicidade, é conexão”. Basta o leitor se lembrar da grande transformação motivacional que uma simples banda causou quando resolveu “passar cantando coisas de amor” – e da importância daquele evento fortuito para as pessoas daquele lugar.
Há outras definições de emoções trazidas por Valliant bastante pertinentes para o campo da dependência química. Para ele, a esperança é a capacidade de transferir a memória afetiva, lírica e límbica que a pessoa possui do passado à “memória do futuro”. “O sofrimento é a perda da autonomia; a esperança é a sua restauração”, afirma. A esperança transforma o desespero em possibilidades futura. Ela é o que vive “no fundo do coração”, a convicção mais profunda. O antídoto contra a adversidade. Já o perdão é “a disposição em abandonar o direito ao ressentimento, ao julgamento negativo e à indiferença em relação a alguém que nos feriu injustamente encorajando qualidades desmerecidas como compaixão, generosidade e até mesmo o amor por tal pessoa”. A empatia é a chave do perdão. A maior recompensa para aqueles que a praticam verdadeiramente, é se ver livre do ressentimento crônico e de seus desdobramentos nocivos, tais como a melancolia, a paranoia, a cobrança e a infelicidade profunda. Por fim, a compaixão é o desejo de afastar alguém, mesmo não atraente, do sofrimento. Sentir compaixão não é apenas ecoar com a dor alheia, mas fazer algo a respeito.
Desse modo, a prática da espiritualidade de maneira regular e voltada para o senso de busca de significado e de propósito de vida, dentro do tratamento da dependência química, é capaz de promover uma visão de mundo mais positiva, ajuda na superação de situações difíceis, desencoraja atitudes maladaptativas – e antiéticas –, aumenta o suporte social, promove a alteridade, ajuda a diminuir a necessidade de controle, encoraja o perdão e a gratidão, promove a esperança. Um banho de energia límbica sobre um sistema de recompensa ressequido pelos tempos de consumo, não com o intuito de aprisioná-lo em crenças messiânicas, mas de aumentar sua plasticidade com o intuito de encorajar o paciente a enfrentar com assertividade os desafios da vida.
Notem que está claro até aqui, mas vale a pena ressaltar, que não é incumbência do profissional da saúde levar ao paciente palavras de fé, amor, alegria, esperança, perdão, compaixão. Certamente é importante que possua uma postura que valide a importância das emoções positivas e que os programas de tratamento possam eventualmente “parar para ver a banda passar”, envolvendo os pacientes na organização de festas tradicionais, organizando visitas aos museus ou idas ao cinema. No entanto, é importante que o paciente também tenha, paralelamente ao tratamento, espaços onde sua espiritualidade possa ser praticada e trabalhava continuamente – mais uma vez, seja num ateliê artístico, num horto florestal ou numa igreja.
Quando a espiritualidade acontece vinculada a uma doutrina religiosa qualquer, há um componente adicional que advém do convívio em grupo, com subsequente aumento da possibilidade de adaptação, melhora da autoestima, formação de novos vínculos de afetivos, diminuição da solidão, aumento do suporte social com subsequente redução de sintomas psiquiátricos e de comportamentos antissociais, maior estabilidade marital.
Por outro lado, a afiliação religiosa pode ser fonte de experiências estressantes e desorganizadoras para o psiquismo, tais como o excesso de devoção às práticas religiosas – negligenciando outros compromissos – ou as interpretações rígidas e literais das Escrituras – levando a atitudes abusivas com relação aos outros. Pode ainda, ser a causa de graves distorções cognitivas, levando ao excesso de culpa pessoal ou julgamento alheio. Por fim, a crença absoluta nos códigos doutrinários levando ao abandono do tratamento médico e psicológico, depositando na fé religiosa a esperança de toda a cura.
Desse modo, abordagens religiosas que se acham autossuficientes, encaram a dependência exclusivamente pelo ponto de vista do “modelo moral” – ou seja, da escolha pecaminosa ou demonizada que precisa ser extirpada e exorcizada pelo emprego exclusivo da fé –, colocando os seus dogmas acima dos preceitos científicos e dos modelos biológicos, psicólogos e espirituais de que embasam o entendimento da dependência hodiernamente, reeditam conflitos superados há séculos. Dessa forma, só conseguem oferecer ao usuário de substâncias psicoativas mais estresse, sofrimento e “automutilação psíquica”. Esse tipo de abordagem anacrônica e atribuidora de culpa não é mais condizente com a contemporaneidade, devendo ser veementemente combatida em todas as esferas e por todas as instâncias de qualquer sociedade democrática.
Desse modo, o desejo, a disposição pessoal e a atitude de “falar com Deus” durante o tratamento da dependência química é – porque não dizer dessa maneira – louvável, devendo ser fortemente estimulada por todos os profissionais da saúde. No entanto, cabe sempre enfatizar que a “prática regular da espiritualidade”, que banha de energia límbica e de criatividade o processo de recuperação, é mais importante que o “deus” aprioristicamente escolhido. Nesse sentido, mais uma vez, ele pode ser proveniente de um credo religioso, da crença em algo pelo qual “valha a pena lutar”, da música, pintura e artes em geral, da observação de pássaros livres na natureza. O importante é a existência desse tipo de conexão – ou conexões – passível de transcendência, que nos tiram momentaneamente da realidade, para depois nos devolverem a ela mais humanizados.
E afinal, tanto Santa Dymphna e São João de Deus, passando por Pinel, Tuke e Maudsley, chegando a Charcot, Freud e Jung, quanto Maxwell Jones, Szasz, Deleuze e Basaglia, partindo de referenciais teóricos e preceitos por vezes diametralmente opostos queriam essencialmente a mesma coisa: cuidados dignos e humanizados para aqueles que sofriam em decorrência da doença mental, independente das raízes de sua causalidade.
Desse modo, se a fé – ou mais amplamente, as emoções positivas – se perderam ou se tornaram “fenômenos menores” para os “doutores”, eis o momento de resgatá-la em sua importância – ainda que cientificamente –, em nome do cuidado. Eis o momento para os que sempre a utilizaram de combiná-la efetivamente aos avanços da Medicina, da psicoterapia e das Ciência Sociais. Daí em diante, é só deixar a pessoa falar com deus que ela bem entender, a sua própria maneira, dentro de um ambiente de cuidados preconizado pelas melhores evidências científicas, respeitando o processo e as escolhas do paciente, dentro do seu processo de recuperação. Fé, Ciência e liberdades individuais de mãos dadas – não poderia haver valor prognóstico melhor.
Marcelo Ribeiro, psiquiatra, membro do Programa de Pós-graduação do Departamento de Psiquiatra da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), docente do Curso de Medicina da Universidade Nove de Julho (Uninove), diretor do Centro de Referência de Álcool, Tabaco e outras Drogas (Cratod) da Secretaria do Estado da Saúde de São Paulo, presidente do Conselho Estadual de Políticas sobre Drogas de São Paulo (Coned).
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