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Para que serve uma internação?

Há algumas justificativas clínicas que norteiam a indicação de internação para uma pessoa com problemas com álcool e drogas.  Vale ressaltar, antes de mais nada, que a internação é um ato médico, sendo apropriada para situações clinicamente determinadas e passíveis de contraindicações que precisam ser adequadamente descartadas.   Geralmente, as internações são motivadas pela a presença de intoxicação aguda ou de síndrome de abstinência graves, pela associação com complicações clínicas, comorbidades psiquiátricas ou risco iminente à integridade física do paciente ou de outras pessoas, entre esses o risco de suicídio, o consumo durante a gestação e a agressividade.

No entanto, há aqueles casos em que a internação é apontada como alternativa frente ao insucesso de tratamentos baseados na comunidade – nos consultórios, ambulatórios e centros de atenção psicossocial (CAPS), por exemplo.  Mas qual a utilidade e a função da internação nessas situações?

A resposta para essa pergunta está bem longe da consensualidade.  Muitos dirão que a internação nunca seria uma alternativa, ainda que o usuário quisesse ser internado.  “– Ele busca uma saída para os seus problemas mais prementes, não para a dependência” – ou seja, não foi o desejo de se tratar que o levou a procurar ajuda, mas sim a busca de “um álibi” para se reconciliar com a esposa, para não perder o emprego, uma forma de encarar os pais depois de ter roubado objetos de casa e sumido cinco dias ou simplesmente o desejo de sair das ruas para um local protegido.

Outros entendem que a presença de tais complicações são a prova cabal de que a internação se faz necessária, ainda que involuntariamente.  “– Se a coisa chegou a esse ponto, de roubar a família, de perder o casamento, da situação de rua… é sinal que a droga já dominou a vida dessa pessoa”.

 Cada recorte teórico traz consigo prenúncios potenciais de mudança e riscos.  O primeiro caso procura tratar a pessoa mais “como gente grande” do que como “doente”, conferindo-lhe por isso “imunidade” quanto à possibilidade de internação; no entanto veda a ele qualquer chance de relacionar os seus comportamentos a aspectos adoecidos de sua personalidade – há um risco nessa concepção:  o de não admitir que tais comportamentos possam ser fruto de uma consciência temporariamente incapaz de discernimento no que tange ao uso de substâncias psicoativas: nesse caso, ela estaria aprisionada ao comportamento de “consumir acima e apesar de tudo” – dessa forma, liberá-la de qualquer tipo de compromisso terapêutico só a deixaria mais refém de sua dependência.

Entre as pessoas tratadas dessa maneira, muitos indivíduos passam anos destrinchando suas vidas em consultórios médicos e psicológicos, renovando promessas de abstinência vãs ou justificando seu consumo a partir de argumentos absolutamente desconexos de tão pessoais, que às vezes beiram a bizarrice de tão tolos: “– Agora eu entendi porque sou assim”, “– A última sessão foi foda!”… e mais uma carreira de cocaína foi esticada, na companhia de uma bela dose de uísque.

No segundo caso, vai no sentido aposto:  considera o indivíduo detentor de tais comportamentos como “doente”, retirando-lhe com mais facilidade sua “maioridade”.  Por um lado, há uma tendência a proteger o usuário com maior agilidade contra os movimentos destrutivos de suas recaídas.  Por outro, há uma tendência a isentá-lo das consequências de seus atos, uma vez que a internação tende a “zerar o jogo”, a resolver os conflitos e reescrever as cláusulas do contrato que foram rompidas.  Há um complicador adicional:  se a abordagem for eminentemente moral, considerando os fenômenos sociais, sem investigar se eles se traduzem em critérios diagnósticos ou possuem lastros neurobiológicos, o tratamento tenderá a ser da mesma natureza, deixando de oferecer ao usuário técnicas psicológicas e farmacoterápicas que poderiam estabilizar de um modo mais favorável e duradouro o seu processo de abstinência.

Entre as pessoas tratadas dessa maneira, há um grupo que tende a assumir um papel de “doente” ou de “adicto em recuperação”, sem assumir os verdadeiros desafios da recuperação, baseados na ideia do pragmatismo, do senso de dever e de assunção de responsabilidades.  Dessa forma – da mesma maneira que os “absolvidos pela razão” –, passam anos em consultórios médicos, psicológicos ou grupos de mútua-ajuda “tentando parar sem conseguir”, colocando tudo “na conta da doença”.  Quase sempre, possuem um histórico coalhado de internações breves e de longa permanência em enfermarias, clínicas e comunidades terapêuticas.

A pergunta norteadora que se deve fazer antes de se indicar uma internação estritamente voltada para o manejo da dependência química, ou seja, quando não há complicações psiquiátricas e clínico-gerais envolvidas é: “a pessoa está conseguindo negociar com a realidade em termos pragmáticos?

Um professor-titular gravemente dependente de álcool, utilizando um litro e meio de uísque por dia, não se reúne com seus pós-graduandos há seis meses, passou suas aulas para dois assistentes e afirma para os filhos que tem preferido ficar em casa para pensar em novos projetos.  Superficialmente, não demonstra nenhum tipo de alteração.  Não resta dúvida, porém, que ele há bastante tempo estruturou todas as suas rotinas em função da bebida.  Além disso, desenvolveu defesas cognitivas e segredos que o mantém longe dessa dura e triste realidade de prisioneiro do álcool – infelizmente no seu caso, tais subterfúgios encontraram proteção e abrigo embaixo de suas vestes talares.  Nitidamente, parou de negociar com a realidade: os seus argumentos pró-etílicos lhe bastam.  Ou alguém tem a coragem humanitária de enfrentá-lo ou receberá alguma ajuda apenas quando estiver apresentando sinais de demência alcoólica.

A internação clínica e a domiciliar, essa última com esquema intensivo de acompanhamento terapêutico (24 horas), combinado com o uso de medicamentos aversivos para o uso de álcool seriam maneiras efetivas de ajudar o cortéx pré-frontal do nosso douto-dependente a conseguir dizer os primeiros “nãos” para o consumo de álcool.  Paralelamente, um planejamento terapêutico visando à melhora na tomada de decisão por parte dos filhos e à instituição de atividades substitutivas – além da retomada das antigas – seria instituído tanto para ocupar o espaço outrora dedicado ao consumo, quanto para aproximar pessoas capazes de ajudá-lo na manutenção de sua abstinência.  O protagonismo dos filhos é vital para o sucesso dessa empreitada, considerando que o pai – tomado pelas rotinas do álcool – não vê a necessidade de mudança.  Desse modo, caberá a eles – de um modo assertivo, partindo de uma orientação profissional adequada e lastreados pelo vínculo afetivo entre eles – “forçar a barra” pela internação, ainda que cheguem às fronteiras da involutariedade, que em última instância deve ser evocada.  Nada além disso seria capaz de fazer o velho professor voltar a negociar em bases concretas com a realidade – e agora com o tratamento.

Já o “adicto em recuperação” tem trinta anos, mas ainda habita a casa materna.  Usuário de cocaína desde os quinze, abandonou o ensino médio devido consumo ininterrupto dessa droga.  Nunca conseguiu trabalhar regularmente, para além de “bicos”.  Vira-e-mexe tira objetos de casa e os troca por substâncias, fazendo a mãe criar toda uma “rotina antifurtos”, tais como manter a porta do seu quarto trancada e nunca mais comprou eletrodomésticos ou eletroeletrônicos portáteis.  Ainda assim, por vezes se vê às voltas com a necessidade de “pagar traficantes” para o filho.  Em momentos críticos, quando desaparece por vários dias, apanha na rua ou torna-se verbalmente ameaçador ou agressivo, a mãe acaba telefonando para o seu psiquiatra que acaba lhe indicando uma internação.  Em geral, o filho permanece por lá algumas semanas, retoma a farmacoterapia, participa de grupos e atividades físicas e volta para casa melhor, prometendo retomar as consultas e mudar de vida.  Mas todas essas promessas se esvaem em poucas semanas – quando tanto.

No segundo caso, internar não se constitui em tabu. Pelo contrário, virou rotina, um verdadeiro “botão de reset”.  No entanto, da mesma forma que o professor que não admitia sua “doença”, o filho em questão também deixara de negociar com a realidade em vários aspectos.  Não se compromete com o tratamento ambulatorial e em momentos “de crise” tem atitudes e comportamentos antissociais direcionados a sua mãe – furtos, ameaças e agressões verbais.  Do ponto de vista pessoal, segue numa condição não-condizente com sua situação de homem adulto, que precisa tomar atitudes contínuas no sentido de conquistar sua autonomia.  Apesar de sua condição psicossocial aparentemente grave, nada disso é tratado objetiva e contratualmente durante o período da internação, que acaba sendo encarada por ele apenas sob o ponto de vista temporal: “– Já fiquei bastante aqui, mãe. ‘Tá na hora de eu volta para casa, levar minha vida, não tenho mais nada para aprender aqui”.

Acontece que a pergunta a se fazer no momento de se pensar um planejamento de alta ou reduzir o monitoramento intensivo não é “quanto tempo se passou?”, mas sim, “a pessoa voltou a conseguir negociar com a realidade em termos pragmáticos?

Tal pergunta é satisfatoriamente respondida na medida em que o paciente –  além de participar das rotinas de tratamento propostas – concorda em construir conjuntamente com a família e a equipe de saúde um contrato terapêutico, no qual estão previstas: (1)  as rotinas terapêuticas pós-alta – incluindo os grupos de mútua-ajuda e práticas de espiritualidade, (2) as normas e regras de comportamento esperadas, (3) todos os compromissos acadêmicos, profissionais, esportivos e de lazer assumidos e (4) as consequências previstas caso haja rompimento de algum desses combinados.  Lapsos e recaídas são considerados comportamentos inadmissíveis, quase sempre relacionados ao retorno da internação, podendo ser monitorados por acompanhantes terapêuticos e testagens de drogas.

Essa etapa é extremamente importante.  Casos como o do filho cuja dependência interfere inclusive na vida pessoal da mãe e nas rotinas da casa precisam de contratos terapêuticos que não apenas fortaleçam a estratégia de tratamento voltada para a abstinência, como também funcionem como verdadeiras “constituições federais”, como “códigos de conduta” capazes mediar a reestruturação de relacionamentos e vínculos enfraquecidos ou rompidos em decorrência do consumo de substâncias psicoativas.

Um grande desafio para todos.  Ao paciente caberá “tirar as regras do papel”, pragmatizá-las em ações capazes de demonstrar engajamento nas propostas terapêuticas e nos demais compromissos assumidos.  Aos familiares, de apoiar e garantir a estrutura logística e emocional ao alcance deles, bem como de aplicar as regras com suas consequências previstas, sempre que necessárias – ainda que signifiquem vários retornos à internação.  O grande desafio também se estende à equipe de tratamento, que se posicionará como a guardiã das regras instituídas e mediadora dos conflitos de surgirão entre o usuário e seus familiares sempre que alguma delas não estiver contribuindo para o funcionamento harmônico do tratamento ou tiver sido transgredida por uma das partes.  O essencial aqui é que esse grupo instituído nunca para de negociar em termos concretos e pautados por regras que funcionem acima de todos.

Nos “áureos tempos da dependência química” reinava de modo absolutista a concepção de que demandas impulsivas e imediatistas do desejo tinham protagonismo sobre todas as outras demandas do psiquismo.  Intervenções radicais como a internação ou o monitoramento intensivo têm por essência a finalidade de informar a esse império despótico da dependência que o psiquismo a partir de agora passou a ter uma “carta magna” promulgada e que o psiquismo passou a ser um estado democrático de direito.

Marcelo Ribeiro, psiquiatra, membro do Programa de Pós-graduação do Departamento de Psiquiatra da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), docente do Curso de Medicina da Universidade Nove de Julho (Uninove), diretor do Centro de Referência de Álcool, Tabaco e outras Drogas (Cratod) da Secretaria do Estado da Saúde de São Paulo, presidente do Conselho Estadual de Políticas sobre Drogas de São Paulo (Coned).    

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