Abstinência, por si só, é como dinheiro guardado embaixo do colchão: desvaloriza rapidamente. Desse modo, é preciso investi-la em patrimônio de recuperação. De outra maneira, o usuário tenderá sempre a convertê-la em recaídas, submetendo-se a uma matemática sempre injusta: por vezes uma recaída de três dias compromete um processo de nove meses de abstinência e tratamento, colocando o paciente novamente descrédito com sua família, seus empregadores e seus apoiadores mais próximos.
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De modo que a abstinência adquirida a partir do tratamento, ainda que obtida “artificialmente”, a partir de monitoramentos intensivos à revelia ou de internações involuntárias, necessita ser investida o mais prontamente possível e consolidada em “patrimônio de recuperação”. Só assim poderá ser enxergada, valorizada e “colocada na balança” pelo próprio paciente, quando uma oportunidade de uso conseguir chamar sua atenção novamente. Antes disso, ele sempre tenderá a trocar, com facilidade, uma bicicleta-de-abstinência por uma canequinha-de-plástico-de-recaída – se é que os mais jovens de quarenta e cinco anos me entendem.
No nível mais básico encontra-se a saúde e o bem-estar da pessoa em recuperação. Investir o tempo de abstinência para sanar os danos físicos provocados pelo consumo prolongado de substâncias psicoativas ou melhorar os padrões clínicos existentes é um desdobramento quase natural de quem entra em tratamento. Pessoas motivadas para o tratamento quase sempre acabam aproveitando a ocasião para fazerem check-ups clínicos, resolver aquela dor lombar que o incomodava há anos, retornar ao dentista ou ir ao ginecologista.
Dentro desse grupo há aqueles que sofreram graves lesões ou adquiriram doenças crônicas em decorrência do consumo de substâncias psicoativas. É o caso de pessoas que sofreram queimaduras extensas, fraturas graves ou traumatismos cranianos após beberem e dirigirem; usuários de cocaína que sofreram acidentes vasculares cerebrais (“derrames”) – evoluindo com sequelas motoras ou neurológicas – ou enfartaram, passando a viver de um modo mais sedentário e limitado; tabagistas que evoluíram com enfisema ou câncer de pulmão; dependentes de álcool que adquiriram doenças do fígado ou diabetes; poliusuários que acabaram contraindo infecções sexualmente transmissíveis, como a AIDS e a hepatite C. Pessoas que necessitarão fazer do cuidado e da superação de suas sequelas – prejuízos permanentes ao seu patrimônio físico e psíquico – parte da razão de ser de sua recuperação.
Também é o momento em que muitos se aproximam das práticas esportivas. Diferentemente da situação anterior, onde se vai em busca de sanar algum prejuízo, a atividade esportiva é um investimento em resultados palpáveis, não apenas do ponto de vista clínico – como a melhora dos níveis de colesterol ou de pressão arterial – mas igualmente estético, cognitivo e emocional: dessa forma, ela está diretamente relacionada com a melhora da autoestima e da capacidade para lidar com o estresse, com o aumento do desempenho acadêmico e com o estreitamento do convívio e das relações familiares, além de melhorar sintomas depressivos e ansiosos, contribuindo para o aprimoramento da qualidade de vida e da saúde mental daqueles que o praticam. O exercício físico parece ser capaz diminuir os comportamentos de busca e a intensidade da fissura, por aumentar a plasticidade da circuitaria do sistema de recompensa e o aporte de oxigênio para a região do córtex pré-frontal. Por fim, oferece um novo estilo de vida e vínculos sociais, quase sempre incompatíveis com o consumo de substâncias psicoativas. Desse modo, o esporte é um investimento potencialmente estruturante para quem está em busca de abstinência estável.
Outro nível relevante para o processo de recuperação são os grupos de convívio. Algumas vezes, os pacientes são oriundos de famílias bastante disfuncionais, vivem relacionamentos conflituosos ou convivem em locais extremamente perigosos e violentos. Inicialmente quase nunca há “recursos de abstinência” vultosos o suficiente para fazer frente a legados dessa ordem de gravidade. Vale mais tentar diminuir sua influência destrutiva, enquanto novas tendências e padrões de relacionamento mais saudáveis vão se estruturando a partir da abstinência.
Nesse sentido, a retomada de um vínculo há muito tempo rompido com um filho ou familiar importante, o esforço para resignificar um relacionamento prejudicado pelo consumo de álcool de um dos cônjuges, a tentativa de estabelecer novas amizades com pessoas que não usam drogas são investimentos de “capital de abstinência” altamente estruturantes.
A busca pelos grupos de mútua-ajuda, comunidades religiosas ou mesmo grupos virtuais voltados para a recuperação não apenas oferece padrões de relacionamento protetores em relação ao uso de substâncias psicoativas, como também a possibilidade de estruturação novos padrões de comportamento e de estilo de vida incompatíveis com o uso de álcool e drogas. Antigos relacionamentos e amizades desvinculados do consumo de drogas – além de protetoras – resgatam também um período de vida abandonado em prol da dependência, fortalecendo dessa maneira o processo de recuperação.
Há o nível relacionado às questões econômicas e sociais. Aqui, encontra-se uma das intercorrências relacionadas ao uso de substâncias ilícitas que mais trazem dificuldade ao processo de recuperação de uma pessoa: a pena de prisão, que ulteriormente limita as oportunidades de vida, gerando exclusão social, estigma e estresse, comprometendo diretamente a recuperação.
A perda dos vínculos sociais mais básicos, levando o dependente químico à situação de rua, bem como o preconceito e o estigma em relação à capacidade do usuário de álcool e drogas em superar sua doença também são desafios apriorísticos à espera da abstinência para serem resolvidos.
Desse modo, programas de oferta de moradia condicionada à permanência em programas de tratamento com monitoramento da abstinência, além de programas de emprego supervisionados e espaços de convivência livres de substâncias psicoativas são maneiras estruturantes de se investir o tempo em abstinência.
Por fim, o nível do ajustamento social e sociocultural, ou seja, estar novamente inserido em redes de apoio social e em sintonia com os valores culturais que necessitam e contam com o indivíduo para existirem, ao mesmo tempo em que são capazes de reconhece-lo como cidadão e de protegê-lo quando necessário. É a consolidação do processo de recuperação. Sinal de que estar abstinente por muito tempo valeu a pena.
Esse é o momento em que a pessoa começa a atingir reconhecimentos por vezes inimagináveis quando decidiu deixar de consumir substâncias pela primeira vez: o término de um curso superior, uma promoção no emprego, o término do financiamento de uma casa, ser convidado para ser padrinho ou madrinha do filho de um primo, abrir a primeira filial do seu restaurante de comida funcional, participar de uma maratona em uma capital europeia, enfim, méritos que não apenas reforçam sua condição como “ex-usuário”, mas que essencialmente denotam que a pessoa passou a ser um membro ativo e respeitado de uma determinada comunidade.
A partir desse ponto, uma nova ordem biológica e sociocultural já se encontra em funcionamento no psiquismo desse indivíduo e a abstinência – apesar de para sempre permanecer como sua fonte original e vital – já não é mais o seu único referencial de energia e de riqueza. O seu horizonte se ampliou, suas responsabilidades aumentaram, sua identidade se transformou, graças a uma decisão – anos atrás – de não deixar sua “riqueza da abstinência” parada debaixo do colchão.
Marcelo Ribeiro, psiquiatra, membro do Programa de Pós-graduação do Departamento de Psiquiatra da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), docente do Curso de Medicina da Universidade Nove de Julho (Uninove), diretor do Centro de Referência de Álcool, Tabaco e outras Drogas (Cratod) da Secretaria do Estado da Saúde de São Paulo, presidente do Conselho Estadual de Políticas sobre Drogas de São Paulo (Coned).