Não é incomum, quando se está elaborando um plano terapêutico, ouvir do paciente palavras cheias de certeza como: “– Tirei todas as bebidas de casa, só deixei os uísques porque sempre odiei o cheiro dessa bebida”, “Odeio cerveja, me empapuça”. Ou então, “– Não precisa se preocupar em deixar um acompanhante comigo pela manhã, eu nunca começo a beber antes da hora do almoço”. Algo mais ingênuo ainda: “– Tudo bem, vou ficar sem beber por um tempo, como você acharem melhor; porém, um pouco mais adiante, quando sentir vontade beber apenas para me divertir, como todo mundo, vou querer fazer isso”; “Ontem eu bebi porque estava muito calor, mas foi apenas uma tacinha de vinho branco, com os amigos”.
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Na esmagadora maioria das vezes a pessoa acredita piamente na veracidade de seus argumentos, sem sequer desconfiar da fragilidade conceitual sobre a qual estão alicerçados. O consumo de substâncias psicoativas, por mais grave que seja, está estruturado sobre hábitos e gostos. Há pessoas que preferem vodca, outras gim ou uísque, outras ainda, só bebem fermentados. Com o passar do tempo, porém, o modo de consumo vai se estreitando de forma idiossincrática, de acordo com os referenciais culturais e a gravidade da dependência – e dos sintomas de abstinência – que acometem aquela pessoa.
Isso quer dizer que incialmente todo o modo de consumo está estruturado e vinculado a compromissos, encontros, preferências e diferentes rotinas sociais. Tais padrões de uso são variados e variáveis durante os dias da semana. No entanto, conforme a necessidade de beber – ou de usar qualquer outra substância psicoativa – se torna crescente, aquela “variabilidade” vai deixando de existir. Em seu lugar surge um padrão de consumo “padronizado” e previsível, descolado dos eventos sociais e organizado basicamente para aliviar sintomas de abstinência – fenômeno conhecido por “estreitamento do repertório do uso”.
Se uma comparação com alimentos fosse possível, a pergunta seria: “Considerando que os seus alimentos favoritos desapareceram da Terra, quantas horas você levaria para comer aquilo que mais sente aversão hoje?”; ou ainda, “Quantos dias de fome seriam necessários para você decidir comer uma bela feijoada fria e rançosa, um pedaço de carne crua ou um peixe bem temperado e gorduroso, no café-da-manhã?” À guisa de conclusão: “Qual o limite preciso entre “gostar” e “querer a qualquer custo”? – mais ainda: considerando que faz parte do processo da dependência apagar definitivamente os limites entre ambos, como você determinará daqui em diante, o que é “beber por gostar, por divertimento” e “beber por necessidade”?
São perguntas que denotam a força da dependência. Uma vez que as substâncias psicoativas conseguem aumentar o tônus do sistema de recompensa de maneira infinitamente mais intensa do que alimentos –sensibilizando-o e monopolizando sua atenção – não serão medidas de controle parciais e cheias de “flancos abertos” que o refrearão na busca pela próxima dose. O fato de a pessoa achar “o fim da picada beber de manhã” ou detestar o cheiro da cerveja, podem deter os ímpetos do sistema de recompensa por algum tempo. No entanto, quando a tensão interna atingir níveis insuportáveis – ainda mais se externamente o estresse e as emoções negativas forem reinantes – o usuário vai, sim, abrir várias latas de cerveja às oito horas da manhã e toma-las até a última gota, aproveitando que seu acompanhante – seja esse a mãe, a tia, o avô, a empregada doméstica ou um AT de verdade – chega todos os dias apenas depois do almoço.
Portanto, na hora de estruturar um plano de tratamento, não se deve partir de certezas apriorísticas, mas sim de regras que estejam acima de todos, implicas na ideia da divisão de responsabilidades. Há um futuro pessoal em jogo, que veda a adoção de qualquer tipo de estratégia que incorra em riscos desnecessários ou que deixe flancos abertos, apenas para agradar a alguém unilateralmente – ainda que esse seja o paciente, o maior interessado no sucesso do plano terapêutico instituído.
Sobre a ideia de voltar a beber apenas quanto “realmente sentir vontade de se divertir, ou relaxar”, “apenas nas situações em que beber é gostoso”… bem, preciso ir agora, deixei o Papa Francisco esperando na linha, enquanto concluía uma conversa por Skype com a Rainha da Inglaterra e compartilhava virtualmente com Sua Majestade, um maravilhoso Lady Grey tea & lemmon butter biscuits – e o Dalai Lama, vai me telefonar daqui a dez minutos. Acreditem se quiserem.
Marcelo Ribeiro, psiquiatra, membro do Programa de Pós-graduação do Departamento de Psiquiatra da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), docente do Curso de Medicina da Universidade Nove de Julho (Uninove), diretor do Centro de Referência de Álcool, Tabaco e outras Drogas (Cratod) da Secretaria do Estado da Saúde de São Paulo, presidente do Conselho Estadual de Políticas sobre Drogas de São Paulo (Coned).