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Memórias de uma cicatriz

Toda a cicatriz aponta para a existência de um incidente de outrora – via de regra doloroso –, de extensão e evidência variadas. Há cicatrizes relacionadas a memórias extremamente traumáticas, enquanto outras, ligadas a lembranças de acidentes banais, superados facilmente ao término da fase inflamatória da cicatrização.

A estabilização do processo de abstinência passa por um processo de natureza semelhante. Para maioria, a decisão de interromper o consumo de substâncias psicoativas acontece em meio algum tipo de crise, de “falência do modelo de uso vigente”: um diagnóstico de uma doença grave, uma separação, uma demissão inesperada, um acidente provocado por imperícia que levou a morte de um terceiro, algo aparentemente difícil de superar.  O efeito dessa dor, para os a partir dela resolveram buscar algum tipo de ajuda, funciona como uma “ferida aberta”, dolorida, que demanda cuidados e movimentos ponderados, com o intuito de preservar o seu processo de recuperação.

No entanto, finalizada a “fase de cicatrização” – ou seja, de superação da crise que motivou a busca por ajuda –, o desejo de retomar o comportamento que originou aquele incidente volta a crescer dentro da pessoa. Sem ter mais o estímulo doloroso como aliado, a consciência do usuário em recuperação começa a ser inundada por memórias relacionadas aos tempos de uso, ou mesmo tempo em que as “memórias da cicatriz” vão perdendo força, sendo relativizadas. O usuário chega a pensar que se passar novamente pelo mesmo corte, a dor da cicatrização não seria tão ruim assim – pelo contrário, seria até suportável.

É o momento em que se põe tudo a perder novamente. Deste modo, o momento da crise – período em que o usuário testemunha e vivencia as maiores consequências do seu consumo desregrado e devotado aos imediatismos da dependência –, é o momento em que as leis pétreas do tratamento devem ser acordadas, com o intuito de fortalecer o usuário contra as investidas que sua própria cabeça fará contra ele mesmo, num futuro próximo. Neste sentido, não bastarão apontar para as cicatrizes, pois elas mesmas serão convertidas em provas materiais de que o passado não foi tão penoso assim. Pelo contrário, podem vir a ser a “prova” de que o usuário é um forte.

Em lugar disso, é necessária a construção de acordos que prevejam intervenções por parte da equipe de saúde e da família sobre o referido comportamento, caso o mesmo teime em retornar, mesmo que tais intervenções signifiquem uma internação involuntária. Lembranças e memórias são sempre relativas, discutíveis. Por isso, nos estágios iniciais do tratamento, tendem mais para o lado dos apelos fissurados e irracionais da doença. Já os contratos e acordos são fatos. E contra fatos, não há argumentos.

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