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Sobre restaurantes, mesas na varanda, cardápios, entradinhas e a ética da empatia

Servir é acima de tudo uma arte, certamente a alma de qualquer restaurante.  Em primeiro lugar, porque oferece acolhimento. Em segundo, porque indica a chegada a um ambiente correto: limpo, bem cuidado, decorado e organizado.  Em terceiro, porque confere qualidade e personalidade ao empreendimento, pautado por um encadeamento complexo e delicado de protocolos e checklists cujo objetivo é conferir a máxima fluidez às rotinas, eliminando assim qualquer barreira causadora de mal-estar ou frustração capaz de decepcionar e afastar os frequentadores.  Tudo isso implica na adoção de medidas para que a reserva da mesa, o tempo de espera, a apresentação do cardápio, a anotação dos pedidos e a chegada da comida sejam feitos no tempo correto, da forma mais educada e elegante possível.

Todo o serviço deve ser capaz de se adaptar às necessidades dos seus clientes, especialmente os considerados o seu “público-alvo”.  Desse modo, restaurantes que recebem famílias devem ter mais cadeirões para crianças disponíveis e uma preocupação adicional em relação à diversificação do cardápio infantil se comparados àqueles que funcionam dentro de salas de concertos, cujo ambiente é menos receptivo aos infantes e voltado para um público de idade avançada.

Restaurantes e suas idiossincrasias de atendimento prestam-se muito bem como metáfora para ajudar a atender os preceitos éticos e diplomáticos que pautam o relacionamento entre a equipe de saúde e o paciente e seus familiares.

Em primeiro lugar, o encontro de ambos – assim como acontece com qualquer tipo de serviço de tratamento – representa o encontro entre dois mundos:  de um lado, a equipe do restaurante, com sua cultura gastronômica, seu modo de receber e servir, além dos preceitos éticos e socioculturais de cada um – a famosa “educação que cada um traz de casa”.  Do outro lado, o cliente com suas expectativas em relação à comida, seus modos de se portar à mesa, com o tamanho de sua fome, juntamente com seus modos-de-ser-e-agir perante o mundo – “a tal a educação caseira”.

O encontro desses dois mundos vai estabelecer “o clima” do lugar, um conceito dotado de extrema volatilidade. Basta imaginar como ficaria o clima de restaurante se metade de seus garçons faltasse ou se o ingrediente do prato mais pedido acabasse.  Ou ainda, se naquela semana, o funcionário mais antigo e querido do estabelecimento morresse tragicamente em um acidente de carro. Do outro lado, um único cliente irritado e disposto a causar tumulto pode deixar toda a equipe desnorteada; caso parta para a gritaria, pode trazer desarmonia por horas, mesmo depois de ter sido retirado do local.  Uma mesa com 12 clientes fanfarrões em um restaurante habitualmente intimista pode criar um ambiente de desarmonia insustentável.

O clima do serviço é tão importante para o tratamento que o criador desse conceito, o professor emérito da Universidade de Stanford, Rudolf Moos, afirma que ele não apenas está diretamente relacionamento à maior satisfação, participação e desempenho do paciente dentro de um programa terapêutico, como também favorece para que os ganhos obtidos nesse ambiente possam ser levados para a vida comunitária do paciente de modo mais adaptado: “quanto melhor o clima, melhor o desempenho no tratamento e na adaptação social e quanto melhor o desempenho e adaptação social, melhor o clima”, afirma o pesquisador.

Voltando ao restaurante, suponha-se que o “cliente” não esteja propriamente motivado para aquele estabelecimento: seu desejo era estar eu outro lugar.  No entanto, está ali apenas para “agradar os caprichos da esposa”, pois lhe disseram que aquela culinária era excessivamente apimentada ou ele simplesmente não tolera aquele tipo de alimento – peixes, frutos do mar, carne, comida vegana.  Enfim, há uma serie de animosidades em potencial precedendo o encontro.

Nesse contexto é essencial recebê-lo empaticamente, para tentar compreender os motivos de sua contrariedade, para não deixar o “clima azedar” – a abordagem empática é uma das principais determinantes de permanência e adesão de uma pessoa a uma proposta de tratamento.

Imbuída desse espírito, a hostess de um restaurante vegetariano recebeu um cliente mal-humorado e sua esposa, que rebateu ao seu elegante e sorridente cumprimento, “– Como estão essa noite?”, com um áspero: “– Melhor se estivesse em qualquer outro lugar comendo uma picanha sangrando. Como está o tempo de espera dessa quitanda?” – emendou com um sorriso de ironia enquanto recebia um merecido cutucão de sua mulher.

A jovem e intrépida anfitriã, tomando o episódio como uma oportunidade de mudar para sempre o conceito de seu cliente carnívoro acerca da cozinha vegetariana, não perdeu tempo: “– Hum, estou vendo que o senhor está faminto. Pois veio ao lugar certo! Nossa especialidade é transformar amantes convictos da picanha em veggies radicais”, disse se aproximando e quebrando o gelo, em tom descontraído sem nunca perder a formalidade e a elegância.  Frente ao olhar de indiferença do freguês, prosseguiu sua abordagem empática, direcionando o casal para uma bela mesa e removendo barreiras que pudessem fazê-lo desanimar ao ponto de desistir do jantar, como a espera prolongada.

Uma vez acomodados, receberam prontamente uma água com hortelã geladinha, pelas mãos do delicado e simpático maîtreEle, então, passou a “ajudar ativamente” o casal, se interessando por seus gostos gastronômicos para além da carne.  Em seguida, “entendeu os motivos” que levaram o casal a fazer aquele ‘programa vegetariano’ e passou a “oferecer opções de escolha” entre os pratos do cardápio, que tivessem alguma relação com o estilo dos clientes.  Tudo isso na forma de “aconselhamento breve”, enquanto servia a água e explicava o cardápio – em menos de três minutos.

Pouco tempo depois, chegou o primeiro pedido: uma sopa de quinoa com couve, legumes da estação picados, como abobrinha, abóbora amarela, pimentão e batata doce.  Mas algo prontamente desagradou o cliente, a ponto de o maître se aproximar espontaneamente. “– Algo saiu errado, senhor?”.  Era o alho.  O garçom decidiu, por conta da casa, retirar aquele prato e chamar o próprio chef do restaurante.

O chef chegou à mesa prontamente, se apresentou forma amistosa e sentou-se com naturalidade.  A conversa não demorou muito para ele o cliente logo descobrirem que eram amantes a culinária espanhola, que falavam castelhano fluentemente e que já estiveram em várias cidades ibéricas.  “– Tengo una sugerencia muy especial para ti y tu encantadora esposa”, anunciou enquanto se despedia cordialmente.

A nova entrada dessa vez foi impactante:  uma sopa de lentilhas marrons, cujo caldo preparado com legumes da estação conferia-lhe uma cremosidade incrível.  A combinação de temperos, desde a cebola branca, passando pelo chá de cominho, tomilho e curry, aromatizados por pimentas exóticas e perfumadas, conferia-lhe um aroma e sabor que calou prazerosamente o mau-humor do contrariado cliente.

Uma salada ceasar vegana preparada com folhas de verduras babies crocantes trouxe refrescância ao paladar e pequeno bowl de risoto de cogumelos, preparado com arroz integral e orégano, fez a transição para o prato principal da noite:  uma paella vegana, temperada com páprica e pimentas aromáticas de uma forma impecável.  Um creme de maçã, com mel, canela e uma bola de sorbet de geleia de pimenta, coroaram a refeição.  Durante todo o jantar um maravilhoso chá gelado com frutas embalou a conversa do casal.  Ao término, o senhor-picanha estava visivelmente transformado: alegre, sorridente, leve.  Chamou o chef, garçom e a hostess para lhes agradecer por uma das melhores noites que já teve e para se desculpar “pela extrema grosseira”.

Esse restaurante cumpriu perfeitamente a função servir como forma de motivar uma pessoa se abrir para novas experiências e pontos de vista.  O primeiro movimento da hostess foi de aceitação do cliente e de suas circunstâncias de “homem contrariado, que reage com mau humor e falta de educação”.  Compreender os sentimentos e as perspectivas do cliente ajudaram-na a enxergá-lo como um parceiro necessitado de ajuda, ao invés de um oponente cheio de resistência, malcriação e frescura.  A hostess pode então se aproximar na qualidade de “aliada” e se sentir à vontade para lhe propor alternativas.

Por outro lado, a aceitação empática jamais deve ser confundida com permissividade.  Há um sistema de regras apriorístico, que é a cultura gastronômica que rege aquele estabelecimento, com suas normas e tradições.  Desse modo, não seria negociável fazer um “bifinho com ovos” só para ele, muito menos deixá-lo trazer de casa uns “coraçõezinhos de frango” para misturar no risoto.  Por mais que a ideia de “servir” seja o foco – ou seja, de estruturar um serviço baseado nas necessidades do paciente – há preceitos teóricos, de formação e composição de equipe que o definem, tornando-o mais apropriado para alguns casos e mais limitado – ou mesmo inadequado – para outros.

Desse modo, aceitar não significa concordar, muito menos aprovar, especialmente porque os apelos à permissividade quase sempre vão de encontro aos pilares que definem a identidade e a natureza de um serviço ou de uma atuação profissional.  Nesse sentido, um psiquiatra, percebendo que sua paciente passara a comparecer a algumas de suas consultas intoxicada, dirigindo o seu próprio veículo, na impossibilidade de falar naquela mesma hora com os filhos “sempre ausentes”, passou a dirigir pessoalmente o carro até a casa da paciente, sempre que ela chegava alcoolizada para o atendimento.  Desse modo, procurou ele próprio compensar a ausência dos filhos e de um motorista, sem perceber que além de reforçar o comportamento de beber e dirigir da paciente, abandonara o seu papel de médico.  Dois meses mais tarde, após a paciente beber e se acidentar gravemente, recebeu uma ligação de um dos filhos informando-lhe, decepcionado, que decidiram procurar outro profissional mais presente junto à família e que levasse mais a sério o tratamento da mãe.

O segundo movimento da hostess foi identificar um problema que fosse realmente importante para o cliente e que estivesse ao alcance dela ajudá-lo a resolver: matar a fome.  Inicialmente, propôs-lhe um “confronto motivacional”: somos especialistas em converter amantes de picanha em vegetarianos – sem qualquer tipo de ação coercitiva. Simultaneamente, começou a tomar providências para resolver a contradição do cliente: estar faminto em um local onde não gostaria de estar.  Desse modo, foi logo arrumando uma bela mesa para o casal, agilizou o atendimento, propôs a ele novas experiências e perspectivas.  Soluções mais comportamentais do que cognitivas.  Quando a experiência inicial se aproximou do colapso, novas estratégias motivacionais foram prontamente lançadas, evitando argumentação e confrontos, dentro do espírito “há um problema a ser resolvido e algo precisa ser feito no sentido de solucioná-lo”.  E ponto.

As decisões, no entanto, em momento algum foram retiradas das mãos do cliente.  Ele poderia ter se levantado e ido embora a todo e qualquer instante.  Aguentou ficar, aparentemente pela esposa.  Em seguida, perante a primeira decepção, permaneceu em nome da súbita e boa vinculação que estabeleceu com o chef.  O importante é que ficou, a ponto de receber “uma dose adequada” daquela experiência gastronômica, cujo efeito sobre o paladar e o humor do homem-da-picanha foi positivamente surpreendente.  Infelizmente, nem sempre isso acontece, mas resultados parciais já trazem grandes benefícios aos usuários e os estimulam a permanecer em tratamento.

Vale ressaltar que apesar do mal-estar, o cliente não “virou a mesa” em nenhum momento: apesar de mal-educado e ríspido, em nenhum instante foi ofensivo, ameaçador ou violento – situações inadmissíveis, que geralmente levam à quebra de confiança e não raramente ao rompimento e término do atendimento profissional.

A arte de bem servir é um atributo de qualquer prática profissional.  No caso da dependência química, as abordagens e as técnicas da Entrevista Motivacional – elaboradas por William Miller e Stephen Rollnick, durante os anos 80 –, se prestam perfeitamente a esse propósito de comprometimento profissional e ação compartilhada e de presença ágil e marcante, sempre em nome da mudança e da transformação almejadas.  Sem, em nenhum momento, colocar garfadas – ou palavras – na boca de quem procura ajuda, salvo em situações de desnutrição extrema.  Ainda assim, a relação empática não desapareceria, apenas mudaria de foco: da preservação e fortalecimento da autodeterminação do sujeito adoecido para o afastamento de qualquer risco iminente e potencialmente danoso à integridade de sua vida.

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