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Para lidar com a dependência, pediatria!

Algumas vezes, o tratamento da dependência química se inicia por uma “internação domiciliar” – ou seja, o paciente, seus pais e a equipe terapêutica combinam que ele permanecerá em casa durante as primeiras semanas de tratamento, na companhia exclusiva dos pais, podendo sair de lá apenas com eles, sem exceção à regra.  Não é incomum, porém, na noite seguinte, a  mãe telefonar ansiosa para o psiquiatra informando-lhe que o filho “decidiu” sair para “tomar um pouco de ar”. “- Há algum problema nisso, caso seja apenas por alguns minutos?” ou então, “- Diga que ele está proibido de sair, doutor”.

Na situação acima, a mãe telefonou em busca de um argumento de autoridade, forte o suficiente para convencer o paciente a não sair, ou para convencer a si própria de que o filho “realmente” necessitava “apenas de alguns minutos lá fora” – nada ligado a chance de recair.  Pode ser ainda que ela, esvaziada de autoridade, buscou transferi-la diretamente para o médico – “doutor, faça alguma coisa!”.  Independentemente da forma, a ânsia de deter a saída do filho quase sempre é resultado de um longo histórico de tentativas fracassadas, decepções e frustrações, de incontáveis recaídas e de internações traumáticas que desgastaram de forma praticamente definitiva o vínculo de confiança entre essa mãe e seu filho.

A família, frente a aparente impossibilidade de deter a presença avassaladora das substâncias psicoativas em seu ambiente de convívio, vai muitas vezes abrindo mão de princípios que outrora considerava essenciais, sagrados, com o intuito de “acomodar” o comportamento disfuncional do filho ou da filha, enquanto tenta compreender e modificar tal disfunção – ou simplesmente para não gerar conflitos, negá-los, esperando que o tempo passe a ser o agente espontâneo de alguma transformação benéfica.

Acontece que crianças crescem e se transformam em adultos.  Ainda que ao final se tornem pessoas sensíveis, inteligentes, geniais, especiais, há  incontáveis situações ao longo da infância e da adolescência que  favorecem que alguns aspectos do psiquismo dessas pessoas  permaneçam funcionando de maneira rudimentar, quase infantil, ainda que o seu dono venha a se transformar em um brilhante reitor de uma grande universidade, num talentoso diplomata ou num habilidoso banqueiro – tais variáveis incluem desde vulnerabilidades genéticas e exposição a fatores de risco, passando por traumas e violências sistemáticas, dinâmicas familiares das mais diversas, até o acesso facilitado às substâncias psicoativas, dentro de casa, entre amigos e no meio social.

O cérebro em formação da criança depende da continência cerebral do adulto para se organizar.  Desse modo, quando uma a criança de quatro anos “quer” um presente, mas não existe justificativa para tal, ou “decide” que ficará em casa sozinha,  cabe ao adulto apontar a impossibilidade daquele “querer” ou “decidir”, quase ao mesmo tempo em que já oferece alternativas do tipo – “- Vamos fazer uma festa dos brinquedos do seu quarto!”, “- Nem terminamos a corrida de patinete de ontem!”, “Só vou te deixar sozinho, se conseguir me pegar primeiro!”, sem confrontá-la ou evocar campos de raciocínio que ela ainda nem consegue atingir ou dominar.

Voltemos à primeira pergunta telefônica da mãe.  Muitas vezes, o anúncio de “quebra de contrato” por parte do paciente, ao invés de uma tomada de decisão eminentemente racional, ponderada e amadurecida, traz em seu bojo os componentes e as estruturas rudimentares ainda vigentes no psiquismo dos pacientes, que vêm à tona ora pelo enfraquecimento da capacidade das estruturas corticais em  dizer “não” aos anseios impulsivos, ora pela intensificação do comportamento de busca do dependente, ora pelo aumento do nível de estresse ou de frustração do ambiente ou uma combinação desses fenômenos.

No caso de situações como essas, uma abordagem composta por três ações simultâneas, assim como se faz com uma criança de quatro anos na vigência de uma birra corriqueira,  parece ser  a mais adequada:  empaticamente, deve-se  se colocar ao lado da pessoa, vedar a possiblidade de atuar o comportamento desejado – pautando-se no combinado anteriormente  entre ela, sua família e a equipe de tratamento, previsto no contrato terapêutico –, ao mesmo tempo em que os encaminhamentos alternativos são apresentados ao paciente.

A metáfora “pediátrica”, em momento algum, tem a intenção de infantilizar ou diminuir a complexidade do aparato psíquico do dependente químico – certamente, ele tem  outras regiões do seu psiquismo muito mais desenvolvidas do que as de outras pessoas quaisquer.  Além disso, os seres humanos são naturalmente um mosaico de comportamentos, entre esses há  aqueles  que se encontram em estágios rudimentares, de natureza problemática, ao lado de outros bem adaptados, alguns deles, inclusive, dotados de genialidade.

Esta metáfora está sendo utilizada aqui para ajudar famílias, profissionais da saúde – e os próprios usuários – a perceberem, de uma forma didática e prática, a existência de um modo de funcionamento imediatista e impulsivo – absolutamente infantil de tão irracional –, mimetizado e travestido em modos de ser e agir aparentemente organizados e estruturados, por intermédio dos quais o paciente  se propõe a tomar “decisões adultas” – aparentemente racionais, informadas e estáveis – mas que, ao contrário, funcionam apenas como subterfúgio para a satisfação do único propósito real: a obtenção da próxima dose – que pode significar um potencial lapso ou recaída.

Eis a importância do tratamento pautado em regras, especialmente nos primeiros tempos, eis a importância da abordagem de natureza motivacional, empática, “pediátrica” – metaforicamente:  ela não está preocupada com a racionalidade dos fatos, mas sim, com a importância das regras e com os preceitos éticos envolvidos nos acordos firmados; e mais ainda com a valorização das probabilidades reais de mudança e com a antecipação de riscos concretos de recaída.

“- Mãe, decidi que preciso tomar um pouco de ar”. 

“- Tomar ar? Nem pensar, meu filho! Vamos estourar uma pipoca.  Seu pai está te chamando, na sala de TV.  Se estiver muito insuportável, você não quer tomar aquelas gotas prescritas pelos seu médico?  Amanhã, se precisar, faremos um vídeo com o doutor.”

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