O sistema de recompensa cerebral tem a função de mapear tudo aquilo que estiver relacionado a atividades de manutenção da vida ou da espécie humana. Para isso, por intermédio de processos associativos automáticos, “atribui saliência” a certos eventos que passam a funcionar como “pistas” ou “gatilhos” de tais atividades e que passam a ser chamados “recompensas”. A partir de então, o contato com essas recompensas desencadeia um comportamento de busca – um “querer”, na sua forma mais pura e gulosa, sem nenhuma relação com a saciedade.
O mecanismo neurobiológico de atribuir saliência se assemelha a ideia de “afixar lembretes” ou “espalhar postites” indicando os eventos de interesse. Isso se dá, sempre que esses eventos são vivenciados e prazerosamente carimbados pela liberação de dopamina, ganhando assim – de forma automática – a alcunha de “relevantes”, “salientes”. Em condições normais de temperatura e pressão, esse “querer” fica sob o controle inibitório cortical – consciente – que não só irá definir se atender ou não àquele impulso, como igualmente, quais serão a melhor hora e momento para fazê-lo.
Mas se o mapeamento se resumisse a isso, todos os eventos teriam a mesma marca. A sopa de jiló e a lasanha da tia Ritinha teriam o mesmo apelo. Desse modo, ainda é necessário que uma outra região do sistema de recompensa, chamado “núcleo encostado”, justamente por se encontrar amparado em uma estrutura do cérebro chamada septo – daí o seu nome em latim, nucleus accumbens – entre em ação. Dentro do sistema de recompensa, cabe a ele a missão de “dar likes” em tudo aquilo que o sistema de recompensa vai relacionando à manutenção da vida e da espécie, ao longo do seu incansável mapeamento. Frente aos eventos de interesse, um aporte de dopamina é enviado ao núcleo encostado, que poderá, assim, atribuir uma nota para aquele evento, em graus variados de intensidade.
Esse evento pode ganhar ainda outras “certificações”, provenientes de três estruturas do sistema de recompensa, que se manifestam enviando para o núcleo encostado, sinais neuroquímicos, por intermédio do neurotransmissor glutamato. Tais “certificações” vão se somar a cada “like” para lhe conferir uma experiência emocional – “que delícia”, “quero mais!“ –, uma memória afetiva, para juntos, deixarem registrado o quão marcante – “saliente” – aquela experiência foi para o cérebro. As estruturas do sistema de recompensa responsáveis por esses “carimbos” são, respectivamente, as amígdalas – não aquelas da garganta, mas duas outras bolinhas, simétricas, nos polos temporais do cérebro –, o hipocampo e o córtex-pré-frontal.
Agora sim, considerando, que tanto a sopa, quanto a lasanha da tia estão relacionados à manutenção da vida e da espécie, ambas são merecedoras um “postite” genérico, como “comida”. Acontece que a esmagadora maioria da população da Terra, definitivamente não é apreciadora de sopa de jiló, diferentemente da lasanha, ainda mais quando preparada de um modo caseiro, pela tia favorita. Nessas circunstâncias, muito provavelmente, a sopa de jiló ganhou “likes” quase neutros ou nenhum, tem registros de memória afetiva nulos ou inexistentes – provavelmente apenas quando a mãe de alguém o forçou a provar, na infância – e certamente, nenhum apelo de querer de natureza emocional. Já a lasanha caseira tem mais “likes” dopaminérgicos do que imagem que bomba no Instagram; a cada um deles encontram-se relacionadas recordações de momentos em família incríveis ou situações em que a fome foi saciada de modo agradável e sublime. Juntamente a isso, o gostinho de “quero mais” glutamatérgico – que vem da amígdala – foi se somando a cada uma dessas experiências, a ponto de tornar os novos convites da tia cada vez mais irresistíveis, um tormento nos momentos em que se está fazendo dieta.
Considerando a “saliência” de ambos – apesar de as duas serem “comida” – , a sopa de jiló, detentora de nenhum “like”, só começaria a receber estímulos de “querer” depois de prolongado e drástico jejum. Comer sopa de jiló para saciar a fome se tornaria uma estratégia “saliente” para o córtex pré-frontal – a instância consciente e decisória do sistema de recompensa – apenas quando essa fome já estivesse desesperadora. Já no segundo caso, ao receber um convite da tia Ritinha para comer a sua suculenta lasanha, no sábado vindouro, o seu sobrinho não só o aceitaria, alegre e salivante, como chegaria mais cedo para aproveitar o restinho de molho da panela, para se sentar à mesa o mais perto possível daquela recompensa derretida e bem recheada, garantindo assim aquele pedaço do cantinho da travessa, que vem com aquele queijo torradinho de leve, que ele venera, e – claro – poder ter a possibilidade de repetir ao alcance do seu braço – além disso, outros dois primos também foram convidados! Notem como a discrepância entre a saliência de ambos os “postites” demandou da parte cortical, consciente, do sistema de recompensa providências marcantemente diferentes, com o intuito de obtê-las.
Imaginemos, no entanto, que esse sobrinho esteja às voltas com o sobrepeso. Vamos considerar que, no seu caso específico, tal sobrepeso decorra, em grande parte de sua predileção – e apetite excessivo – por alimentos altamente calóricos, com alta concentração de carboidratos. Ao longo do tempo, conforme seus “likes” foram se espalhando pelo mundo, cada vez mais acompanhados por memórias afetivas “da mama” e por comandos de “querer” açucarados ou à pururuca, seu comportamento cortical – consciente –, se tornou cada vez mais “saliente” no sentido aprimorar a busca por rotinas, programas, compras e escolhas ao redor desses “postites” deliciosos, em detrimento de outras preferências, muitas vezes, inclusive, fora do âmbito alimentar. Como resultado, houve o desenvolvimento de uma “cultura-do-comer-muito”, formou-se a tal “cabeça de gordo”, como se diz por aí, pejorativamente.
No momento em que ele se motiva sinceramente para perder peso, vai haver um embate: um mundo altamente estruturado para a garantia constante de encontros com pratos deliciosos, legitimado por uma cultura agradabilíssima de restaurantes magníficos e festas contando com comidas de extremo bom gosto – preparadas com maestria – dentro de um ambiente esteticamente impecável, permeado por sensações delicadíssimas, em meio as quais era possível conhecer pessoas incríveis e trocar informações interessantes – sem falar em programas televisivos em companhia de petiscos sensacionais –, vai ser trocado, repentinamente, por uma academia cheirando a vestiário, um monte de legumes crus, melões aguados, toda a sorte de carnes brancas de tão sem-graças e marmitas diets para serem comidas na copinha da própria empresa, bem distante daquela cultura prazerosa que antes praticamente definia sua própria identidade.
Em meio a tanta adversidade, apelos da fome e bombardeios fissurados de “querer”, tanto a austeridade e quanto a disciplina do sobrinho só se tornaram possíveis graças a um aparato organizado previamente. Ele, com o intuito de conter o apetite gigantesco eliminou todos as guloseimas, contratou um personal trainer, passou a ir à academia todos os dias, com dieta, subidas à balança todas as segundas-feiras… Mas algum sinal de recompensa parecia surgir no horizonte: ao final de três meses, perdera seis quilos! Estava longe ainda da barriguinha six packs almejada, mas já não se sentia envergonhado quando ia à piscina, pelo contrário: estava até mais saidinho! Prenúncios de grandes mudanças pareciam mais próximos – ou menos distantes – a cada dia.
Nesse clima de primeiros avanços dessa longa jornada, numa noite em que chegara em casa muito cansado e estressado, tendo se desentendido com seu chefe e vivendo um momento delicado em seu relacionamento, recebeu um WhatsApp inesperado dos primos: “Tia Ritinha faz 80. Jantar só para nós três nessa quarta. Lasanha máster. Abs”. Um debate acalorado teve início em sua mente. Argumentos de todo tipo, procuravam convencê-lo a comparecer ou demovê-lo da ideia, alguns deles, horríveis: “- Tudo bem que você está de dieta, mas ela já tem oitenta, e se ela morrer? Nunca mais vai provar a lasanha dela?”
No final, decidiu que chegaria mais tarde, torcendo para que os dois primos já tivessem feito o maior estrago. Dito e feito. Com o buquê de flores mais lindo do mundo, chegou ao apartamento da tia, mas teve uma surpresa: os primos não puderam ir! Um deles, médico, teve uma urgência e o outro, advogado, estava retornando de viagem, ficou preso na ponte-aérea! Sobraram apenas Ritinha, seu sobrinho, e… ela, a lasanha! A essa altura, já estava tudo anunciado nessa crônica: depois do primeiro pedacinho-pequeno, pedido com assertividade, o sobrinho decidiu pegar mais outro – um tiquinho maior –, depois mais outro, mais outro e, por fim, um daqueles do jeito que ele gosta! Comeu mais da metade travessa da tia Ritinha! Matou a vontade! Claro, não poderia voltar para casa sem provar do magnífico pudim de leite condensado da tia. Hoje era um dia especial, de exceção à regra. Eu mereço, também, vai! Que semana tenho tido! Comeu quase metade do doce – na verdade, mais da metade.
Quando chegou em casa, havia um certo ar de derrota pairando sobre a sua capacidade de se determinar. De alguma maneira, o seu plano original era não de comer nada, ou no máximo, de comer o que sobrasse dos primos. Mas o destino conspirou contra ele e acabou “enfiando o pé na jaca”. Em meio a esses pensamentos, adormeceu no sofá e acordou atrasado no dia seguinte: “- Perdi a academia!” Saiu correndo para trabalhar. Quando se deu conta, já estava no trabalho. Sem a sua marmita diet. Acabou então, tomando “aquele café” que não tomava havia semanas: pãozinho na chapa, chocolate-quente, bolo. Repetiu o bolo. Levou uma paglia italiana para comer no meio da manhã. Na hora do almoço, saiu com os amigos: foram almoçar naquele restaurante contemporâneo aonde não ia há tempos, onde pediu aquele ravióli recheado e comeu um tiramisu de sobremesa. À noite, para sua surpresa, sua irmã, que vive no interior, o esperava em sua casa. Acabaram pedindo uma pizza e creme-de-papaia.
Nessa toada, faz exatamente duas semanas que o sobrinho não vai à academia, voltou a frequentar os mesmos restaurantes de antes e recuperou os seis quilos que levou três suados meses para perder. Marcado na memória, para ser retomado algum dia, ficou apenas o gostinho de sentir a possibilidade de um dia vir a ser um rapaz magro – um desejo ainda muito discreto, perto da exuberância de “recompensas” glutônicas que o cérebro dele tem mapeado para o seu dia-a-dia. Certamente novas batalhas nessa guerra contra a balança ainda estão por vir.
As substâncias psicoativas são capazes de ativar o sistema de recompensa numa intensidade muito maior do que aquela produzida pelas atividades relacionadas à manutenção da vida e da espécie – a cocaína pode aumentar em 500% a atividade dopaminérgica do sistema. Uma explicação meramente especulativa, porém, no mínimo intrigante, defende que as substâncias psicoativas que ativam o sistema de recompensa existem na natureza em baixíssimas concentrações, há milhões de anos, nas folhas, brotos, raízes e frutos comestíveis, ricos em vitaminas, sais minerais e aminoácidos essenciais.
Desse modo, já bem antes de os primatas aparecerem sobre a Terra, a presença de 0,2% de cocaína nas folhas de coca ou de 0,1% álcool em um fruto maduro “salientava”, “servia de lembrete” para os animais que havia brotos tenros de coca ou frutas maduras à disposição dele. Tomando essas últimas como exemplo, trata-se de alimentos altamente perecíveis e procurados por quase todos os seres vivos; desse modo, dada a alta competitividade e a curta duração dessas frutas, elas devem ser ingeridas rapidamente e no menor tempo possível – há milhões de anos. Desse modo, as substâncias psicoativas estavam inseridas em um contexto alimentar, para sinalizar aos animais a presença de alimentos na natureza.
No entanto, a partir do momento em que os seres humanos foram capazes de concentrar esses alimentos, de estocá-los dentro das mais variadas apresentações e de utilizá-los considerando as suas incontáveis aplicações e modos de consumo, um novo paradigma se fez: aquele sistema delicadamente acostumado à irrigação por gotejamento passou por um tsunami psicoativo. Mais do que isso, agora, para o sistema de recompensa, as substâncias psicoativas, ao invés de “sinalizadoras” da presença de alimentos, passaram a ser, para o ser humano, o alimento em si.
Eis o dilema com o qual se deparam milhões de indivíduos mundo afora, que apresentam problemas relacionados a essa circuitaria que se mistura com a história da evolução das espécies : se abster de algo pelo qual esse circuito dá “likes” e carimbos de “querer” como se fosse o seu alimento mais desejado. Como ao longo da existência, os alimentos mais gostosos e inebriantes caíam do pé ou passavam em cardumes ou bandos apenas de tempos em tempos, essa circuitaria acabou se repetindo sem o “botão da saciedade”, do “stop”. Então, o momento de “comer e coçar” e – nos dias hoje – de usar drogas é um comando de freios precários, especialmente quando o piloto se aventura em ladeiras demasiado íngremes ou curvas perigosas. A pessoa pensa estar no comando, quando, na realidade, não passa de um mero passageiro do “vício”.
Marcelo Ribeiro, psiquiatra, membro do Programa de Pós-graduação do Departamento de Psiquiatra da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), docente do Curso de Medicina da Universidade Nove de Julho (Uninove), diretor do Centro de Referência de Álcool, Tabaco e outras Drogas (Cratod) da Secretaria do Estado da Saúde de São Paulo, presidente do Conselho Estadual de Políticas sobre Drogas de São Paulo (Coned).
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