Top

Sobre colisões traseiras e a ética da recaída

Certa vez, um paciente muitíssimo ponderado, que nunca fizera uso de álcool e drogas em toda a sua vida, chegou para a consulta trazendo um comentário sobre um acidente de carro no qual se envolvera, acertando a traseira de outro veículo.  Prontamente consciente de sua responsabilidade como motorista, mas longe de ser um homem capaz de se intimidar, ao ver e perceber que o motorista atingido saiu do carro irritado e dirigiu-se a ele as pressas, ameaçando romper o espaço de distância que dois seres humanos reservam para iniciar uma conversa racional, após aconselhá-lo brevemente a acalmar-se – foi dizendo de um modo gentil: “- Você acha que as pessoas saem de casa pensando em bater o carro? Calma, vou tomar as providências para você consertar o seu carro.”

Para mim, nessa hora, ficou posta a ética da recaída: exatamente a mesma da colisão traseira entre veículos. De acordo com o Código Brasileiro de Trânsito [Artigo 29, II], é de total responsabilidade do condutor “guardar distância (…) entre o seu e os demais veículos”, independentemente das circunstâncias envolvidas – “a velocidade e as condições do local, da circulação, do veículo e as condições climáticas” – ou seja, você pode até dizer que bateu porque estava chovendo e derrapou ou porque o carro da frente brecou de repente, como uma forma de se consolar ou para tentar entender melhor o ocorrido; no entanto, acima de tudo, guardar a distância era seu o dever-maior.  Tanto é que ninguém discute de quem é a responsabilidade de acionar o seguro.

Com a recaída é a mesma coisa:  ninguém em tratamento minimamente motivado e disposto a seguir um combinado terapêutico acorda pensando em recair.  Acontece que quando tal incidente acontece, ao contrário da colisão traseira, há uma grande dificuldade em  se assumir a responsabilidade pelo ocorrido.  Com muita frequência, há tentativas de ocultá-la, de mantê-la em segredo com os profissionais da saúde – apesar do acordo de sempre revelá-la a todos os envolvidos no tratamento – de se isentar da “culpa” pelo ocorrido ou de atribuí-la a terceiros: “recaí porque minha mãe me oprime”, “isso aconteceu porque não aguento mais a vida vocês me impuseram”, “meus pais acham que eu sou um robô, recair é dizer para eles que sou de carne e osso” – como dessas há outras,  incontáveis.

Tal fato acontece porque não há uma regra clara determinando que tipo de consequência estruturará esse fenômeno.  E quando um contrato não possui penalidades, é mais fácil anular o acordo firmado e propor um novo – ad eternum.  Desse modo, falta um “código de trânsito”, para a ética da recaída.

Terapeuticamente, esse código equivale ao contrato terapêutico.  Ele, para funcionar, deve estabelecer que a responsabilidade pela “manutenção da distância”, ou seja, “pela manutenção da abstinência” é do paciente, “independentemente das circunstâncias”, ou seja, a culpa nunca é de ninguém, mas a responsabilidade é sempre do paciente – ainda que o trabalho do processo de recuperação seja nosso.  Essa regra está acima de todos.

A recaída deve ser vista como o fracasso da tentativa de se instituir uma estratégia de mudança de estilo de vida, tendo a abstinência como meta.  Algumas vezes, um verdadeiro exército de profissionais – sem contar a família, amigos, instituições – se coloca ao lado da pessoa para ajudá-la nesse delicado e complexo processo de mudança de vida!  O paciente, muitas vezes, assume uma postura derrotista ou de alheamento – “não consigo parar de usar”, “estou tentando deixar de beber” –, com o intuito de se eximir do processo ou de responsabilizar a família ou a proposta de tratamento pelo resultado não alcançado – a abstinência acordada.

É imprescindível que o paciente tenha noção que, por mais que esteja monitorado vinte e quatro horas por dia – e por mais paradoxal que isso possa parecer – , quem está no controle é ele.  A missão dele é não usar.  A missão da equipe de saúde e da família é de ajuda-lo a garantir que isso vá acontecer.  A recaída, conforme foi dito, deve sempre ser lida como “o fracasso de um plano”.  Enquanto outro é formulado – ou o mesmo sofre reformulações importantes – as consequências previstas no contrato terapêutico devem ser aplicadas; não existe outra maneira de o cérebro aprender a negociar e amadurecer a não ser negociando com “dados de realidade”, como se diz no jargão psicológico.  Recair é assumir tais consequências, sem apontar dedos, buscar isenções ou apelar para “jeitinhos-só-dessa-vez”.

Marcelo Ribeiro, psiquiatra, membro do Programa de Pós-graduação do Departamento de Psiquiatra da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), docente do Curso de Medicina da Universidade Nove de Julho (Uninove), diretor do Centro de Referência de Álcool, Tabaco e outras Drogas (Cratod) da Secretaria do Estado da Saúde de São Paulo, presidente do Conselho Estadual de Políticas sobre Drogas de São Paulo (Coned).

Mais de Cultura