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Qual o momento de transplantar o vaso de volta à terra?

O “vaso terapêutico” que define o programa de tratamento pode ser bastante benéfico para a recuperação do paciente.  Por “vaso” se entende não apenas o “tratamento formal”, composto pelos profissionais da saúde e seus diversos ambientes de atuação – do consultório individual às clinicas de desintoxicação, passando pelos ambulatórios, CAPS-AD e hospitais-dia –, como também as instâncias de acolhimento social e de recuperação – como as comunidades terapêuticas –, os grupos de mútua-ajuda, as organizações sociais voltadas para o apoio psicossocial dos usuários e suas famílias, as entidades religiosas, enfim, o “vaso” se refere à rede atenção ao usuário como um todo.

Apesar de sua incomensurável utilidade, chega um momento em que o paciente deseja se ver livre dele.  Há um desejo de retornar ao solo, se enraizar outra vez “livremente”, sem se sentir limitado por seus “contornos”, os quais para alguns deixam de ser vistos  como terapêuticos para se transformarem em empecilhos, verdadeiras prisões que se opõem ao retorno a sua vida “normal” de membro da sociedade. Outras pessoas, sentem-se diminuídas, infantilizadas – nas sociedades ocidentais, reconhecer que se possui algum tipo de “problema mental” é quase assinar um atestado de inferioridade, um reconhecimento de culpa; os pacientes sentem o peso desse estigma e procuram com razão se esquivar dele, sair da mira do preconceito.

O momento de transplantar o vaso à terra é uma etapa crucial do tratamento, um momento em que, infelizmente – valendo-se de outra metáfora –, muitos jogam fora a água do banho com o bebê junto; o bebê aqui, no caso, equivale ao processo de recuperação recém-instituído e bem-sucedido até aquele instante.

O critério para se transplantar o vaso de volta a terra não é o tempo despendido em seu interior, mas sim se a “compatibilidade terapêutica” do solo – os seus aspectos de adubagem biológica e estrutura do cuidado psicossocial – deixaram de ser suficientes para sustentar o processo de crescimento sustentável de recuperação do paciente.

Muitas vezes, o “vaso terapêutico” bem adubado e cuidado intensivamente, regado e exposto ao sol na quantidade adequada faz parecer que tudo na vida do paciente está correndo às mil maravilhas.  No entanto, ele ainda não possui raízes fortes o suficiente para se aprofundarem para além da superfície tóxica do solo onde vive – incluindo o convívio com os seus pares mais íntimos.  Suas folhas ainda não estão devidamente viçosas e impermeabilizadas para sofrerem com as oscilações de luz e umidade, geradoras de estresse e bloqueadoras do crescimento.

Como resultado desse transplante prematuro, processo de desenvolvimento dessa “muda de recuperação”, cujo crescimento em direção à autonomia parecia líquido e certo e impassível de falhas ou infortúnios, se enfraquece rapidamente ao ponto da inércia.  Nesse contexto, mais uma vez fragilizada e vulnerável à ação de pragas e larvas comilonas, acaba sucumbindo e se transformando em adubo para as “ervas daninhas” do desejo de consumo.

Desse modo, há muitas perguntas que devem anteceder esse replantio.   Por exemplo, não seria mais apropriado passá-lo antes para um vaso maior – menos monitorado –, onde suas raízes pudessem crescer ainda mais, com subsequente fortalecimento de seu tronco, ramos e folhas?  Ou ainda, não seria necessário reconhecer, antes do transplante derradeiro – assim como acontece com qualquer outra doença crônica, como o diabetes ou a hipertensão, ou com comportamentos desadaptados que redundam em sobrepeso ou gastos excessivos –, que nunca mais existirá um “enraizamento livre de preocupações”?

Esse pode ser considerado “um momento crucial, dentro da etapa crucial”, que é o replantio: reconhecer que a viabilidade daquela “muda de recuperação” dependerá de cuidados que se estenderão pelo resto da vida.  Isso implicará em considerar, se o solo original é mesmo o mais adequado para receber e alicerçar o desenvolvimento dessa planta.  Em seguida, se ela reúne de fato os pré-requisitos necessários para essa fase da recuperação, ou se ainda serão necessários “cercadinhos”, “estacas de madeira”, adubamentos e tratamentos periódicos do solo, além de podas supervisionadas para potencializar suas metas de crescimento.  Por fim, pode ser que tanto o solo, quanto o processo de crescimento e desenvolvimento da muda necessitem de apoio permanente, por mais que muito tempo depois – já árvore frondosa e referência para recuperação de muitas outras mudas – frequentar esses profissionais ou instâncias de mútua-ajuda se destine mais ao serviço de uma causa, para o autoconhecimento ou para a mera manutenção de medicamentos há muito estabilizados, bem longe daquele passado que a apartou do solo aonde vive hoje de maneira autônoma.

Marcelo Ribeiro, psiquiatra, membro do Programa de Pós-graduação do Departamento de Psiquiatra da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), docente do Curso de Medicina da Universidade Nove de Julho (Uninove), diretor do Centro de Referência de Álcool, Tabaco e outras Drogas (Cratod) da Secretaria do Estado da Saúde de São Paulo, presidente do Conselho Estadual de Políticas sobre Drogas de São Paulo (Coned).

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