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Revolvendo o solo da recuperação

Chuvas torrenciais ininterruptas, meses a fio, para muito além da capacidade de absorção daquele terreno.  Alagamentos persistentes.  Desaparecimento da camada de húmus e da microfauna revolvedora do solo.  Certamente, esse estado de acúmulo de águas persistirá mesmo após o término das chuvas.

Aos poucos, o terreno alagado se converterá em uma gigantesca poça de lama e essa, em uma lâmina de aparência rígida, endurecida pela ação persistente e calcinante da luz solar.  Vem a craquelagem das placas: frestas úmidas vão aos poucos se desfazendo em terra e poeira as quais, com o passar do tempo, formam uma camada de terra seca, que vai puxando cada vez mais para a superfície a água que encharcou e se acumulou no solo.

Com o cair das chuvas esperadas da estação, que umidificam o solo no ritmo da natureza, os brotos de mato e gramíneas começam a enraizar timidamente no chão de terra. Logo adiante ele voltará a ser perfurado por minhocas e insetos construtores ou se converterá em berçário para larvas de todos os gêneros.  Ainda assim, em algumas situações será necessária a recuperação química e biológica desse solo, pela utilização de fertilizantes orgânicos ou de adubos minerais.

Após alguns ciclos de vida animal e vegetal, mesmo à custa de raízes filiformes, arbustos modestos e pequeníssimos insetos, novamente uma camada de húmus poderá se formar, ganhando consistência, até se converter em serrapilheira – uma camada generosa de material orgânico, em diferentes estágios de decomposição, por intermédio da qual os nutrientes finalmente voltarão a ser filtrados e retornarão ao solo de forma natural, tornando-o progressivamente mais fértil e, a cada estação, mais propício para ser revolvido e cultivado novamente.

Muitas pessoas acreditam – e infelizmente boa parte delas, profissionais da saúde – que a desintoxicação não passa do ato de se observar o usuário intoxicado por algumas horas no pronto-socorro, deitado numa cama, “tomando um sorinho na veia”.  Para eles, desintoxicar é, literalmente, deixar a “droga” sair do organismo.  Um grave equívoco. Isso é apenas e tão somente o término das “chuvas psicoativas torrenciais”. Quase a totalidade das substâncias psicoativas é eliminada do organismo em menos de vinte e quatro horas, mas os efeitos neurotóxicos e inflamatórios, bem como as neuroadaptações que o uso crônico provoca sobre o “solo cerebral e mental” não acabam com o raiar da abstinência.

A desintoxicação – apesar de não possuir um parâmetro de tempo preciso – se estende para além da ideia da mera interrupção do uso, para englobar, minimamente, um período inicial de resolução de sintomas de abstinência, no qual o cérebro começa a readaptar o seu funcionamento, sem a presença da droga.  Mesmo na ausência das síndromes de abstinência mais clássicas, como as do álcool e dos opioides, que duram em média de três a setes dias – de acordo com a gravidade da dependência – os dias que se sucedem à parada do uso, em geral, trazem a marca desse estado de amolecimento, da lama, do tédio, dos estados indiferenciados – com frequência, sintomas psiquiátricos desses primeiros tempos, de maneira isolada ou combinada, estruturam síndromes que se assemelham, mas não se comportam exatamente como os transtornos mentais classicamente descritos, são instáveis e propensas à labilidade, misturando algumas vezes mais de um tipo de transtorno, num verdadeiro mosaico psicopatológico.

Tais sintomas tendem à melhora – espontânea ou sob medicação – , conforme o estado psíquico do usuário em abstinência vai ganhando estabilidade, forma, se estruturando – são  as tais placas de barro.  Mas tudo é ainda muito frágil: há pouquíssimo espaço para se trabalhar conteúdos de natureza cognitiva ou profunda – pelo contrário, é o momento de se oferecer atividades suportivas, estruturadas em grupos motivacionais, de terapia-ocupacional, ou de mútua-ajuda.  Medicamentos auxiliam a resolução dos sintomas psiquiátricos primários ou secundários, que reduzem a vontade ou o comportamento de busca, nesse sistema nervoso emocionalmente lábil e ainda pouco capaz de articulações, e protegem o “solo cerebral”, favorecendo o processo de recuperação.

A desintoxicação deve se estender até esse período, em geral, entre quinze e trinta dias, podendo se alongar um pouco mais, nos casos de maior gravidade.  O modelo habitual se dá em enfermarias psiquiátricas, dentro da perspectiva multidisciplinar, voltada à construção de um diagnóstico que elucide a gravidade da dependência, as doenças clínicas-gerais e psiquiátricas associadas (comorbidades), os fatores de crise relacionados ao quadro atual, a motivação da pessoa para o tratamento e os fatores de proteção e risco vigentes, com ênfase na família e nas habilidades do indivíduo.  A desintoxicação também pode se dar ambulatorialmente, eventualmente com apoio de visitas domiciliares, residências terapêuticas, hospitais-dia e acompanhantes terapêuticos.

A fase de “formação do chão de terra” marca o retorno de um funcionamento mais articulado do psiquismo.  Mais uma vez, a pessoa voltou a ter uma “camada seca” estruturada, pré-frontal, capaz de oferecer uma interface entre o seu sistema nervoso “mais profundo” – mamífero e reptiliano – e as demandas socioculturais que o cercam.  É o momento em que o usuário que “só falava de droga”, aparentemente de maneira súbita, começa a ampliar o seu repertório social, a ter outros anseios, retomar assuntos antigos.  Com a chegada das “chuvas neuroquímicas fisiológicas”, juntamente com as novas conexões sinápticas, que brotam timidamente, novos padrões de comportamento começam a ser moldados, na forma de desejos e formulação de planos futuros, especialmente quando acontecem dentro de ambientes relacionados à cultura de recuperação.

Mas a estrutura cerebral desenvolvida até aqui ainda carece de capacidade inibitória, ou seja, está longe de resistir às investidas torrenciais e fissurentas do desejo de consumo.  Nesse contexto, qualquer retorno de chuvas psicoativas – sejam elas garoas ou tempestades – é potencialmente desastroso:  a estruturação cortical está começando a arriscar os seus primeiros brotos voltados para a ideia da recuperação e da mudança de estilo de vida. O sistema nervoso ainda se encontra “túrgido” de gatilhos que facilmente o levariam de volta ao consumo, não fossem as curvas-de-nível, as telas e coberturas e demais estratégias de blindagem e monitoramento – muitas vezes intensivo –, com o intuito de proteger o solo, enquanto ele próprio não vai criando sua camada de proteção.

A estruturação da serrapilheira, após ciclos sucessivos de objetivos e metas ora frustrados, ora aprendidos, ora atingidos – sempre substrato de amadurecimento –, marca a reconquista da autonomia, a partir da estruturação de um sistema de filtros que retira dos erros e acertos, bem  como das conquistas provenientes da abstinência, o substrato energético que fortalecerá o patrimônio mental da pessoa – e do seu processo de recuperação.

Marcelo Ribeiro, psiquiatra, membro do Programa de Pós-graduação do Departamento de Psiquiatra da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), docente do Curso de Medicina da Universidade Nove de Julho (Uninove), diretor do Centro de Referência de Álcool, Tabaco e outras Drogas (Cratod) da Secretaria do Estado da Saúde de São Paulo, presidente do Conselho Estadual de Políticas sobre Drogas de São Paulo (Coned).

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