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Dando leitinho no pires para o tigre

“Jovem adota três moradores da cracolândia”. Essa era a manchete da matéria da Folha de São Paulo, do dia oito de fevereiro de 2012. Naquele momento, fazia pouco mais de um mês que a “cracolândia” da região da Luz vivia sob forte intervenção policial, a qual, com o intuito de desmantelar o narcotráfico, acabara atingindo e expondo – mais uma vez – as mazelas, bizarrices e repugnâncias de um Brasil excluído e desigual – desde os tempos da Colônia, diga-se de passagem.

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Nesse ambiente de comoção e solidariedade em relação aos “craqueiros”, hordas famélicas de usuários de crack – vagando sem rumo pelo centro da cidade após a violência impetrada – foram maciçamente noticiadas nos jornais e emissoras de televisão do país – nesses, os rostos dos usuários, desdentados pelo crack, desfigurados pela desnutrição e ensanguentados por balas de borrachas e cassetetes, sensibilizaram a nação.
Era aniversário da capital, dia 25 de janeiro. Nesse dia de feriado, uma jovem bem-nascida e bem intencionada, estudante de engenharia da Universidade de São Paulo, moradora de um bairro nobre da cidade, saiu de casa e dirigiu-se à cracolândia resoluta a ajudar: “adotou três moradores da região”, como descreveu o jornal paulistano.
Todos os três usuários retratados – dois homens e uma mulher, adultos jovens – , tinham histórias trágicas e tristes: fuga de casa durante a infância em decorrência de violência pela figura supostamente paterna, abandono parental, negligência, maus-tratos, perda “de todos os dentes e da guarda das duas filhas”. Relatos duros o suficiente para deduzir que o crack entrou na vida desse trio como único lenitivo possível, após tanto sofrimento – na vida e na cracolândia. Desse modo, só poderiam ser dignos de pena e tratados como retirantes, refugiados, as pobres almas massacradas pela violência e pelo ódio dos preconceituosos.
Na manhã seguinte, nossa heroína do Paraíso – sim, ela morava literalmente no lado paradisíaco da capital – acompanhou os “adotados” para entrevistas de emprego, junto ao órgão de assistência social legalmente designado pelo munícipio. Em seguida, alugou um apartamento para eles, pagou três meses adiantados, exigindo, em contrapartida, “apenas” que eles “largassem o vício”. Um deles aceitou o emprego. A moça banguela, em crise de abstinência, largou tudo e voltou à cracolândia. O terceiro, roubou R$ 250 de um vizinho e fugiu. “É claro que não imaginava que isso fosse acontecer”, disse nossa heroína, ao final, decepcionada.
Há reportagens mais fortes do que essa, que demonstram – não raramente de forma sensacionalista – como muitas vezes, o usuário de substâncias psicoativas é capaz de colocar o seu desejo de obter a próxima dose acima de tudo aquilo que ele mesmo entende como “prioritário”: higiene pessoal, roupas, dentes na boca, saúde de modo geral, proteção contra a violência, saúde sexual e reprodutiva, direito de ter e de cuidar dos filhos… Para os muitos gravemente dependentes tudo isso se esvai completamente, na vigência de uma fissura.
Nossa heroína – quisera o mundo fosse habitado apenas por pessoas como ela – saiu decidida a ajudar. Foi ao centro da cidade e “adotou” três pessoas, partindo de critérios – provavelmente pessoais – que não ficaram claros na reportagem do jornal. Tocada pelo clima de solidariedade, conseguiu enxergar o problema social, mas não enxergou a doença. Desse modo, aleatoriamente, ofereceu estrutura psicossocial para três pessoas. Um deles, parece ter-se beneficiado, não se sabe por quanto tempo. Os outros dois não resistiram, sendo que um deles, na ânsia de consumir, acabou assaltando o vizinho.
Nem todos precisam de tratamento formal de alta complexidade para mudarem seu estilo de vida – ou, pelo menos, para iniciar um processo de mudança. A reportagem da Folha nos trouxe um exemplo sucinto disso. No entanto, aqueles que acreditam que solucionarão os problemas da dependência química valendo-se de métodos eminentemente psicossociais e espirituais quase sempre se deparam com esse “bicho solto” com o qual não contavam, que acaba “devorando” precocemente o seu mal-recém-iniciado processo de recuperação.
Isso não significa que tais métodos sejam insuficientes. Pelo contrário: sabe-se atualmente que abordagens psicossociais e espirituais são capazes de moldar a estrutura e o funcionamento biológico – na mesma proporção em que a farmacologia é capaz de melhorar o desempenho da psicoterapia e o trabalho da espiritualidade. Portanto, o problema não é deixar de incluir “operadores do biológico” – psiquiatras, neurologistas, clínicos-gerais –, mas sim negar a existência da doença, negligenciando o seu enfrentamento.
O resto, não passa de lamúrias míopes, de quem se recusa a constatar o óbvio, documentado cientificamente de modo cada vez mais consistente, ao longo das últimas cinco décadas: a dependência química é uma doença, dotada de processos autônomos, onde desejos impulsivos são pouco ou nada sensíveis aos apelos da razão e muito menos, do afeto e da moral, se estiverem destituídos de estratégias de tratamento – biológicas, psicossociais, espirituais ou uma combinação de qualquer uma das duas ou de todas essas – capazes de fortalecer o desejo motivado de recuperação.
Umas das cenas iniciais do filme “As Aventuras de Pi” [Life of Pi, Ang Lee, 2012], na qual o protagonista, ainda uma criança ingênua, decide encarar o novo tigre-de-bengala do zoológico de seu pai, oferecendo a ele, jaula adentro, um minúsculo pedaço de carne, juntamente com todo o seu terno bracinho, é a alegoria das consequências potenciais para aqueles que decidem encarar os desafios relacionados à recuperação – tanto como pacientes, quanto como profissionais da saúde e familiares – sem ainda estarem devidamente preparados.
Quando o destino aproxima os dois novamente, dessa vez em um bote salva-vidas, vagando pelo Pacífico e pelo Atlântico, após um trágico naufrágio, Pi, agora um jovem e destemido adulto, passa boa parte da viagem em uma estrutura improvisada fora do bote; aos poucos vai aprendendo a “domar” o tigre, uma expressão do próprio subconsciente do personagem. No decorrer do filme, Pi tem uma oportunidade de ouro de se livrar do felino, quando esse se atira ao mar e não consegue retornar ao bote – mas extirpá-lo equivaleria a uma lobotomia na vida real. Só foi possível se aproximar do tigre em três situações: 1) após se sentir minimamente iniciado na arte de domar, enfrentou o felino de modo assertivo para conseguir o atum que pulou fortuitamente em seu barco; 2) quando a grande tempestade, a expressão das forças da Natureza e da totalidade da psique, revelou a pequenez de ambos e, 3), quando o tigre, extremamente enfraquecido pela fome, não representava mais perigo. Ainda assim, ao se separar do herói, na praia, após quase um ano vagando juntos pelos oceanos, para profundo desespero de Pi, foi embora, desaparecendo na floresta, sem se despedir – “tigres não são amigos, sempre o alertara seu velho pai”.

A dependência química é uma doença crônica, que para sempre habitará a psique do usuário. Da mesma forma que para o tigre de Blake nenhuma “mordaça pôde conter os seus pavorosos terrores”, ou seja, nada nesse mundo seria capaz de domar a dependência a ponto de convertê-la em “uso controlado” – assim como um tigre nunca poderia ser domesticado como um gatinho.

Desse modo, o objetivo-maior do tratamento – ainda que a doença seja colocada inicial e artificialmente numa “jaula” por métodos de monitoramento e de tratamento intensivo – é a tomada crescente de consciência por parte do paciente de que os processos de superação da doença consistem justamente na estruturação de um estilo de vida – de uma existência – que não gire em volta da dependência e suas pilhagens psíquicas imediatistas.

Durante essa construção, sujeita a alguns enfrentamentos necessários – nunca simplesmente o de você esticar um pires com leitinho para o tigre, achando que ele iria sorver apenas o que você desejaria que ele lambesse –, diante do enfraquecimento, da remissão parcial dos processos autônomos da doença, em um dado instante, espera-se que ela passe a habitar terras longínquas, incapazes de influenciar a economia dos processos mentais mais nobres e caros ao funcionamento da consciência. Longe suficientemente a ponto de ela se tornar apenas um legado de boas lembranças e, se possível, fonte de inspiração poética, “nas florestas da noite”.

Marcelo Ribeiro, psiquiatra, membro do Programa de Pós-graduação do Departamento de Psiquiatra da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), docente do Curso de Medicina da Universidade Nove de Julho (Uninove), diretor do Centro de Referência de Álcool, Tabaco e outras Drogas (Cratod) da Secretaria do Estado da Saúde de São Paulo, presidente do Conselho Estadual de Políticas sobre Drogas de São Paulo (Coned).

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