Relapse [inglês] = recaída
A ontológica trilogia Matrix [Lilly & Lana Wachowski, 1999-2003], conta a epopeia do herói cibernético Neo, que descobre, com a ajuda Morpheus e sua trupe, que toda a humanidade – inclusive ele próprio – se encontrava, na realidade, adormecida e aprisionada dentro de “cápsulas amnióticas”, por meio das quais conectores e fios elétricos extraiam dos seres humanos toda a sua bioenergia.
Durante o zênite da revolução tecnológica, máquinas dotadas de inteligência artificial travaram um conflito mortal contra os humanos, vencido por elas no final. Como consequência, os vencidos foram colocados em um sono profundo, enquanto sua mente era conectada a uma espécie de simulador de realidade virtual interativa, chamada Matrix, por influência do qual imaginavam estar acordados, em atividade, levando suas vidas humanas de sempre.
Na realidade, porém, o mundo natural e a civilização como concebidos pela humanidade, haviam se transformado em destroços e ruínas, recobertos por uma sombra inóspita e hostil, que impedia para sempre a incidência da luz solar. Suas maravilhas de outrora viviam apenas na realidade artificial da Matrix, construída pelas máquinas sorvedoras de bioenergia, apenas para ludibriar os humanos.
Neo, Morpheus e seus amigos, livres das amarras do alheamento inebriante da Matrix, começam procurar meios de reconstruir a civilização humana partindo de fundamentos reais e concretos. Os poucos humanos que conseguiram se libertar criaram a resistência, que se concentrava numa cidade subterrânea onde os humanos nasciam livres, chamada Zion. Frequentemente, porém, sofriam perigosos reveses e ataques, como a traição de um de seus membros, Cypher, que vendeu sua “alma cibernética” ao “sistema”, decidindo entregar os amigos às máquinas e retornar ao seu casulo opressor, desde que, ao ser reconectado à Matrix, passasse a ser alguém “rico”, “alguém importante”, “um artista” – “a ignorância é uma benção”, conclui.
Pensando a recuperação como essa nova disposição da consciência (“Neo”, é o prefixo grego para “novo”), que retira o usuário do sonho inebriante da dependência (Morfeu era o deus do sonho, na mitologia grego-romana), um longo percurso subterrâneo, guiado pela ideia da recuperação se abriu perante os heróis da trilogia, cujo objetivo revolucionário consistia não apenas em construir um novo mundo (Zion ou Sião, se refere à Terra Prometida bíblica), partindo de bases sólidas e duradouras – ainda que de início protegidas contra os ataques certeiros do inimigo, nos subterrâneos da psique –, como também desconfigurar para sempre aquele alheamento criado justamente para enfraquecer os propósitos da consciência acerca da recuperação – como um vírus da “cultura de consumo”: a Matrix.
Nesse sentido, a “Matrix Relapsed”, cuja capacidade de arregimentar soldados revolucionários menos motivados – como Cypher, um apelido para Lúcifer – quase colocou em xeque um projeto de enfrentamento e de autoconhecimento extremamente complexo e pacientemente planejado, o qual, tendo sido executado no espírito das regras e com trabalho em equipe, permitiu ao herói desvendar os mistérios mais recônditos da recuperação, para, finalmente, sair da postura defensiva para a de enfrentamento assertivo.
No campo pragmático da recuperação, o usuário de substâncias psicoativas muitas vezes chega para consultas queixando-se de piora, dizendo-se absolutamente tomado pelo tédio e pela tristeza, subjugado e oprimido por regras que não fazem o menor sentido. Passa, então, a questionar os métodos terapêuticos instituídos, responsabilizando-os por seu estado de humor deprimido e “entrevado”, enxergando a possiblidade de consumir eventualmente – ou mesmo de retornar ao período habitual de uso, “só que agora de modo mais controlado” –, não apenas como uma possiblidade real, como a solução para todos os males causados em sua vida até então.
Parecem momentos de dissociação “propositadamente arquitetados” pelo desejo cerebral límbico de continuar a consumir drogas de modo indefinido. Muitas vezes, o estado da pessoa está inquestionavelmente melhor – inclusive com ganhos decorrentes da abstinência –, mas ela segue se sentindo mal, “na pior” – é como se a mente fosse capaz de criar uma anti-Matrix, devastada, sem vida e opressiva, cuja porta de saída pudesse ser aberta apenas pelos códigos misteriosos do consumo de substâncias psicoativas. Outras vezes, aquilo que fora instituído pelo tratamento e que parecia trazer ao menos alguma satisfação, perde o sentido, o mesmo “vazio existencial” reaparece e uma bruma densa de tédio recobre todos os ganhos – parece que as bases desse “mundo novo” perderam o sentido. Ou ainda, apesar de as coisas estarem “indo muito bem”, repentinamente, o paciente parou de ir à terapia, faz duas semanas que parou a academia, faltou a semana passada e voltou ao mesmo marasmo dos tempos de consumo. No retorno à consulta, relata os fatos como se fossem meras ocorrências, decisões aparentemente irrelevantes, em meio a uma indiferença afetiva que não estava ali há poucas semanas.
Em todos os casos anteriores, as soluções propostas e os desfechos esperados parecem óbvios: voltar a consumir seria a única solução possível para aquele momento de extrema aridez psicossocial, de indiferença afetiva e desamparo psíquico. Lágrimas altamente convincentes de dor e desconsolo brotam dos olhos dos pacientes e escorrem por suas faces. Mais uma vez, o cérebro do usuário parece ser dotado de um magnífico e avançado “simulador de realidade virtual” que, partindo de premissas messiânicas e saudosistas, lhe apresenta soluções absolutamente distorcidas que desconsideram totalmente o passado recente de consumo.
Dessa forma, a usuária de álcool, abstinente há seis meses, visivelmente mais ativa, com rotinas pragmáticas, mais próxima dos seus relacionamentos e em fase de franca superação clínica de um quadro de cirrose hepática e de neuropatia periférica, a qual já comprometia seriamente sua marcha, começou a faltar às consultas e a beber escondida, até que, numa certa manhã fora flagrada por sua mãe, misturando uísque no café. Na consulta seguinte, em meio a choros e a queixas depressivas, relatou não suportar mais aquela vida vazia e sem prazer, que as dúvidas levantadas pela família e a equipe médica sobre o seu proceder eram intoleráveis, alegando ter o direito de poder decidir se voltaria beber “socialmente”.
Em nenhum instante, porém, se lembrou de que há poucos meses estava literalmente restrita a sua cama – na verdade, sua “cápsula” –, devido a dificuldades de locomoção, dores lancinantes e sintomas de desconforto psíquico graves, aliviados momentaneamente pelo uso de vodca que fazia desde a manhã até o anoitecer – tudo aquilo estava superado naquele momento, graças a sua dedicação ao tratamento e à abstinência que conquistara, partindo de bases reais e concretas. Os subterrâneos da construção de sua “terra prometida” pareciam, porém, intoleráveis para ela. Pediu para voltar à Matrix.
Outro usuário de álcool decidiu interromper o consumo de bebidas depois de um período de anos consumindo pelo menos um litro de destilado por dia, que o relegou, da mesma forma que a paciente anterior, ao âmbito doméstico, afastado de suas atividades profissionais e fazendo todos os seus relacionamentos íntimos orbitarem ao redor de suas rotinas de consumo – cada vez mais rígidas e previsíveis. Acabou, assim, “encapsulado” pelos seus hábitos de consumo “estreitados”, caricatos e rotineiros – cada vez mais destinados a aliviar sintomas de abstinência –, indiferente a tudo, exceto a suas rotinas de consumo. Totalmente aprisionado.
O período inicial de recuperação foi literalmente “sob trevas”: desanimado, sem energia para nada além das rotinas do tratamento, doenças clínicas associadas, danos cognitivos. Sentimentos devastadores de desolação, de natureza decididamente melancólica, dominaram os primeiros meses. Certamente, beber passou por sua cabeça como uma maneira de acabar com tudo aquilo – mas retornar à “cápsula”, assim como Cypher, talvez significasse para ele “trair” todas as outras funções de sua consciência, completamente dedicadas à construção do seu “novo mundo”. Perseverou. Sofreu ataques, internos – de fissura – e externos – de estigma e incompreensão –, mas foi tocando a vida em frente: buscou apoio em grupos de mútua-ajuda por algum tempo – deveria ter buscado mais –, se aproximou de amigos estruturantes em seu ambiente de trabalho – no qual tinha estabilidade, funcionando assim como um forte ambiente protetor –, tomou medicamentos e dedicou-se à terapia.
Aos poucos, ampliou o seu repertório social, reaproximou-se da filha – estabelecendo com ela uma qualidade de vínculo que nunca tivera, “chancelada” pela abstinência que vinha consolidando dentro de si. Dois anos depois trabalhava de uma maneira mais estruturada e prazerosa e sentia-se mais próximo e “dono” das conquistas que realizara sob a égide do senso de dever. De vez em quando – agora já tem coragem de revelar isso na terapia – passa por sua cabeça a ideia de beber para “se aliviar um pouco das coisas”, “extravasar”, mas tudo não passam de déjà vu da Matrix – em processo de desinstalação –, imagens de sedução, cantos-de-sereia, cujo preço a ser pago, ele sabe muito bem, é a perda dos vínculos com a realidade, o retorno a rotinas “encapsuladoras” da dependência e a reinstalação da Matrix: o ponto em que ele perderia outra vez a liberdade de fazer escolhas perante a sua doença, chamada “dependência de substâncias psicoativas”.
Marcelo Ribeiro, psiquiatra, membro do Programa de Pós-graduação do Departamento de Psiquiatra da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), docente do Curso de Medicina da Universidade Nove de Julho (Uninove), diretor do Centro de Referência de Álcool, Tabaco e outras Drogas (Cratod) da Secretaria do Estado da Saúde de São Paulo, presidente do Conselho Estadual de Políticas sobre Drogas de São Paulo (Coned).
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