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Desintoxicar é desratizar sem manutenção

Desintoxicação = um conjunto de cuidados, voltado para o tratamento da intoxicação aguda ou da síndrome de abstinência e destinado tanto a prevenir os agravos a saúde relacionados a esses comportamentos, quanto a oferecer abordagens terapêuticas para aqueles que desejam a abstinência como meta, mas apresentam dificuldade em alcança-la ambulatorialmente; destina-se, da mesma forma, a realizar as primeiras investigações diagnósticas, a conhecer o paciente e sua família de perto e a oferecer propostas de abordagens médicas e psicossociais para a fase ambulatorial regular do tratamento, funcionando como a porta de entrada, o “ponta-pé-inicial” para o tratamento, antes de sê-lo propriamente.  Em geral, acontece em períodos breves de internação ou de monitoramento ambulatorial intensivo, estruturados a partir de “programas de desintoxicação”, elaborados e gerenciados por equipes multidisciplinares, com o intuito de colocar o paciente recém-saído “do olho-do-furacão” do consumo, em pé novamente, reestruturando minimamente vínculos, desenvolvendo propostas motivadoras conjuntas, diagnosticando e iniciando o tratamento de transtornos psiquiátricos e psicossociais de toda a ordem.  Uma internação – ou uma ação ambulatorial monitorada altamente intensiva –  que se faz pensando na alta e na retomada das atividades regulares o mais rápido possível.

Ratos, camundongos e ratazanas acompanham a humanidade desde os primórdios de sua existência.  Provavelmente são originários da Ásia, chegando à Europa juntamente com as ondas migratórias arianas.  Durante a revolução agrícola e o florescimento da vida urbana, a partir do ano mil, infestaram as cidades, transformando-se em vetores da famosa “peste negra”, que dizimou um terço da população europeia (século XIV).  Dois séculos depois, flutuando pelos porões dos navios durante as Grandes Navegações, ganharam o planeta.

O descuido no manuseio dos alimentos e a produção de lixo são a causa da promoção e do sucesso adaptativo desse grupo de mamíferos, responsável por mais mortes humanas do que qualquer outro animal da classe mamalia.  Considerando sua capacidade de destruir fiações, causando incêndios, ou de contaminar cinco vezes mais a quantidade de alimentos que ingerem, estima-se que cada rato, camundongo ou ratazana do planeta consuma cerca de dez dólares em alimentos e materiais por ano.  A cidade de São Paulo tem uma população desses roedores da ordem de cento e vinte milhões – cerca de 10 a 15 desses para cada cidadão ou cidadã da Paulicéia. Desse modo, causam um prejuízo direto da ordem de um bilhão e duzentos milhões de reais anualmente somente para a capital.

Ratos, camundongos e ratazanas vivem cerca de dois anos, sendo capazes de se reproduzirem mais de dez vezes durante o ano, cerca de cinco a doze filhotes por gestação.  Logo, sua capacidade de infestação é mais do que evidente.  Dessa forma, sua natureza imunda, invasiva e destrutiva – associada à disseminação de doenças – torna necessária a instituição de um esquema preventivo permanente, com o intuito de eliminar restos de alimentos, criação de tecnologias capazes de tornar os ambientes cada vez mais à prova de ratos e de desenvolver programas de extermínio eficientes.  Tais medidas de controle devem ser contínuas, para manter as populações de roedores no menor nível possível.

Assim como acontece com esses roedores-parasitas, o mecanismo da dependência consiste justamente no “sequestro” do sistema de recompensa, o qual passa a mapear o mundo em função das necessidades imediatas relacionadas aos próximos episódios de consumo, sinalizadas por meio de fissuras e comportamentos compulsivos, em detrimento do que antes motivava e dava sentido à vida da pessoa acometida.  Energicamente, tal qual uma infestação de ratos, toda a reserva funcional do cérebro vai aos poucos sendo “pilhada” pelos episódios de consumo sucessivos.

Nesse sentido, a ideia de desintoxicar funciona justamente como uma grande desratização.  Basta imaginar uma casa cheia de reservas e recursos, por anos habitada por esses roedores sorrateiros, infiltrados nos locais mais inusitados, sempre à espera de uma oportunidade de tirar proveito dos descuidos do comportamento humano.  Centenas deles.  Talvez, nesse caso, seja necessária a formação de uma equipe multidisciplinarbiólogos, arquitetos, engenheiros e empresas de extermínio de pragas –, tamanha desordem inusitada em que atingiu aquela infestação.  A partir de um diagnóstico adequado e da instituição de um plano de ação, uma série de medidas tais como a vedação do acesso desses animais a alimentos e resíduos, fechamento de buracos e frestas, controle de ralos, bem como a aplicação de armadilhas e venenos provocariam de pronto uma grande redução do número visível desses seres indesejáveis, tonando o ambiente mais palatável para a vida humana.

Acontece que a desratização – ainda mais na situação “em massa” imaginada –, pela mera ação concentrada de um time de especialistas, está muito, muito longe de acabar com essa complexa rede de roedores.  Ratos, camundongos e ratazanas foram lapidados pela evolução para resistirem no recôndito mais sujo da existência humana.  Ao sentirem a ação orquestrada da consciência em busca da retomada de controle de um espaço outrora sob seu comando e regozijo, certamente se retrairão.  Mas, que ninguém se engane, retornarão tão logo percebam que o clima se tornou propício a sua atuação oculta, sem deixar de ser descuidada – roendo tampas, deixando restos de comida e de fezes à mostra. Mais ainda, se o seu retorno não for seguido por alguma consequência, voltarão a se reproduzir novamente e a dominar a situação exatamente como tudo era antes.

Nesse sentido, em termos prognósticos, uma grande quantidade e variedade de estudos demonstram hoje que a desintoxicação isolada traz efeitos positivos para a vida psicossocial do usuário apenas por alguns meses, um ano talvez, perdendo força em seguida, para dali a dez anos, não fazer nenhuma diferença, se comparada com dependentes químicos que nunca se trataram.  Exatamente como uma desratização, num local outrora tomado por centenas de ratos, deixada em seguida à própria sorte das rotinas anteriores.  Pode ser até que a casa esteja mais bem vedada, que o cachorro adquirido deixe os parasitas um pouco mais atentos, que o efeito dos venenos ainda siga fazendo o seu papel.  Mas se não houver uma mudança de atitude em relação à estocagem de alimentos, à produção resíduos e à manutenção do controle de pragas, esses seres do esgoto – ao invés de diminuírem em termos populacionais a ponto de buscarem outras plagas – se estruturarão novamente, até dominarem aquele sistema novamente.

Os comportamentos que definem a dependência, assim como os desses mamíferos altamente eficazes, são de natureza irracional e impulsiva e se estruturam a partir das oportunidades de uso, a ponto de fazerem o aparato cortical – consciente – viver progressivamente em função da próxima dose, em detrimento dos demais campos de vida.  Portanto, especialmente num primeiro instante, os cuidados preventivos, a evitação de estímulos e a eterna vigilância são componentes essenciais para tratar essa patologia que apenas passará a entender e a considerar os apelos e os comandos racionais, quando esses, por si só, funcionarem como regras de comportamento e não como a manifestação do desejo de sua existência.

Marcelo Ribeiro, psiquiatra, membro do Programa de Pós-graduação do Departamento de Psiquiatra da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), docente do Curso de Medicina da Universidade Nove de Julho (Uninove), diretor do Centro de Referência de Álcool, Tabaco e outras Drogas (Cratod) da Secretaria do Estado da Saúde de São Paulo, presidente do Conselho Estadual de Políticas sobre Drogas de São Paulo (Coned).

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