Pessoas com problemas relacionados ao consumo de substâncias psicoativas ficam melhores quando estão dentro de algum programa de tratamento do que fora. Há evidências robustas de que o tratamento produz mudanças positivas e significativas não apenas nos padrões de uso de drogas, como também nos comportamentos disfuncionais – entre eles a criminalidade –, na autonomia e na qualidade de vida dos envolvidos.
A dependência química é uma doença de natureza crônica, com comportamento bastante parecido com o diabetes ou a hipertensão. Imaginem um ambulatório especializado no tratamento dessas patologias. Partindo da totalidade dos pacientes que frequentam as inúmeras atividades oferecidas – em diferentes graus de intensidade – há sempre um grupo altamente aderido às rotinas e às propostas oferecidas: nunca faltam às consultas e grupos suportivos, não falham com os medicamentos prescritos, seguem à risca a dieta, deixaram de ser sedentários, fazem os check-ups anuais… vão viver com qualidade de vida superior e por mais tempo, do que a média da população livre de doenças crônicas. Na outra ponta, há os devoradores de sal e açúcar incorrigíveis, que procuram adequar o seu medicamento a suas rotinas desregradas, vivem às voltas com crises agudas – que os levam a internações – e lidam com complicações crônicas, muitas vezes de altíssima gravidade. Entre ambos, há incontáveis modos e estilos de vida possíveis – do diabético esbelto e saudável que procura compensar o seu hábito de comer doces com práticas esportivas regulares, ao hipertenso que não abandonou completamente o sal, mas procura tomar os remédios e fazer controles laboratoriais de modo correto perene. Todos eles, no entanto, incluindo os “incorrigíveis” estão melhores dentro do tratamento do que se estivessem sem cuidado de saúde algum.
Com a dependência química, acontece a mesma coisa: de um lado estão aqueles firmemente comprometidos com a ideia da recuperação, definida como um estilo de vida voluntariamente instituído e mantido de maneira estável, caracterizado por sobriedade, qualidade de vida, saúde e cidadania. Na outra ponta estão os pacientes aderidos de maneira precária, que comparecem ao tratamento de modo burocrático, têm sérias dúvidas acerca da real efetividade desse, não utilizam os medicamentos como deveriam, faltam em demasia ou mesmo desaparecem por longos períodos, retornando apenas nas situações de crise ou por “livre e espontânea pressão da família”. Entre eles, encontram- se desde aqueles que perseguem de perto a recuperação, passando pelos que a desejam sem nada fazerem para alcançá-la, até os que não gostariam de estar lá, mas procuram ao menos achar um sentido para aquilo tudo.
Todo esse universo de pacientes – do mais preservado ao mais comprometido – está em melhor condição clínica do que o seu semelhante fora de qualquer tipo de apoio e cuidado – considerando as substâncias utilizadas, a gravidade da dependência e o tempo de consumo. E, notem, de acordo com a Organização Mundial da Saúde, a cada 11 latino-americanos que necessitam de tratamento, apenas um consegue alcançá-lo de modo satisfatório.
De acordo com o National Institute on Drug Abuse (NIDA), as pessoas que estão em tratamento para dependência química reduzem o seu consumo no mínimo pela metade. Além disso se envolvem muito menos em contravenções e comportamentos antissociais. Já os índices de empregabilidade aumentam quarenta por cento, quando o tratamento é seguido de maneira regular – tanto pelo paciente, quanto por seus familiares. Tudo isso demonstrar que mesmo quando o tratamento voltado para a abstinência não atinge o seu objetivo principal, ainda assim, ajuda o usuário e a saúde pública como um todo – como já se falou repetidamente aqui, é melhor estar dentro, do que estar fora.
Por isso, ao invés de se perguntar se o tratamento funciona ou não, o mais adequado seria perguntar como ele poder aprimorado e adequado para as necessidades de cada pessoa que procura ajuda. Nesse sentido, engana-se quem acredita que o tratamento voltado para a abstinência tem nessa o seu único objetivo. Mais equivocada, ainda, é a ideia que é preciso estar abstinente para ser aceito ou enquadrado nesse método. Pelo contrário, o tratamento da dependência química enxerga o usuário em todas as suas dimensões, valoriza os seus anseios mais íntimos, respeita sua diversidade e se oferece como um instrumento de transformação pessoal, de reinserção social e de resgate da autonomia e da cidadania.
O tratamento da dependência química apenas não se constrange em assumir que a abstinência é a melhor maneira para se atingir a almejada transformação pessoal – seja ela qual for – que povoa a mente de milhões de usuários com problemas relacionados ao consumo de substâncias psicoativas. Mais do que isso: alguma transformação é possível na vigência do uso problemático, mas tal processo apenas se concretizará de maneira estável e definitiva quando o usuário for capaz de escolher entre o seu modo consumo problemático e aquilo que realmente almeja para si e para o seu grupo de convívio.
No entanto, na ausência de tal decisão, há um espaço de tolerância, empático e dialético para se discutir, com o intuito de aproximar tamanha discrepância – ou seja, o usuário não precisa estar abstinente ou ter-se decidido por ela para entrar e estar em tratamento. No começo, inclusive, muitas vezes, o desejo da abstinência vive apenas na mente e nas condutas empáticas da equipe de tratamento. É a busca de proximidade e o respeito às diferenças que pautam o relacionamento entre usuário e a equipe de tratamento.
O restante é trabalho conjunto, a busca de soluções plausíveis, num ambiente de otimismo realista. Nesse contexto, porém, a ideia da abstinência precisa estar viva dentro de alguém, à espera do melhor momento para germinar e ganhar força dentro de um processo terapêutico que invariavelmente se encontra voltado para o fortalecimento da identidade, o reestabelecimento de vínculos, a reinserção social e o resgate da cidadania por parte do usuário. A arte do tratamento consiste justamente em fomentar, facilitar, perseguir esse momento da semeadura certeira, pelas mãos do próprio paciente, sem no entanto deixa-lo erodir o próprio terreno enquanto não toma essa tão esperada decisão.
Marcelo Ribeiro, psiquiatra, membro do Programa de Pós-graduação do Departamento de Psiquiatra da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), docente do Curso de Medicina da Universidade Nove de Julho (Uninove), diretor do Centro de Referência de Álcool, Tabaco e outras Drogas (Cratod) da Secretaria do Estado da Saúde de São Paulo, presidente do Conselho Estadual de Políticas sobre Drogas de São Paulo (Coned).