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La vie en rose, minha pequena Helena

Hoje.  Naquela mesma madrugada que me viu nascer há quase cinquenta anos – será que as madrugadas se repetem desse modo tão óbvio, meu caro amigo Pedro? – me preparava para terminar mais um dos textos de minha coluna semanal, com aquela mesma certeza de que estava muito perto de um final satisfatório, acerca um tema há muito imaginado e maturado, para ser publicado – no devido tempo, sempre depois de passar pelos olhos gramatica e poeticamente aquilinos de minha sogra, pela leitura atenciosa e não mesmo poética de minha mulher (ela odeia ser chamada de esposa) –, dentro do gosto da minha mui elegante e irrepreensível editora, Lígia Kas.  Minha mãe, no final da tarde, infalivelmente teceria um comentário, sempre agradável e pertinente, de sua leitura sobre o meu texto, ainda que apenas pelo WhatsApp.

Tudo vai dar certo no final”, tinha isso muito claro, tal como um mantra, no fundo um subterfúgio ocidental para continuar vagando e floreando pelo Facebook por mais alguns minutinhos, antes da labuta.  Eis que me deparo, então, com um vídeo no Youtube de uma teenager metida a cantora indie, com alma de blueseira, absolutamente caucasiana, clara como seu futuro promissor de moça de mundo rico, assim como quis imaginar.  Brilho que reluzia certezas ainda mais certas quando exibia seu sorriso metálico tranquilo e feliz, daqueles que somente as adolescentes que já sabem o que não querem, são capazes de ter.

Já tinha visto essa young lady – agora de madrugada vim saber que era irlandesa – postada em algum lugar.  Não me interessei na ocasião.  Ela começa o vídeo assim, segundos  antes de se aventurar pelo clássicos dos clássicos, patrimônio imaterial de todo o mundo francófono, La vie en rose: “I don’t speak french!”, dando-se ao direito a um introito risonho-maroto, um antídoto contra qualquer tipo de comentário pedante e repreensivo contra sua arte e sua voz, nascida espontânea e delicadamente em meio a deveres de casa, cordas de violão arrebentadas e aparelhos dentários.

Naveguei um pouco mais por outros de seus vídeos – lembrem-se, a madruga urgia, minha editora, Lígia, não poderia me aguardar ansiosamente em vão, gostava de pensar.  Vi que reinterpretava sucessos há muito imortalizados por mulheres, as quais, muitas vezes defenderam sua arte sob o preço de “sangue, suor e lágrimas”, como o gosto popular dado à clichês eufemistas, se habituou a se referir à porrada, violência, estupro, humilhação, desrespeito, perseguição, assassínios sem falar nos legados que continuam a machucar sem nunca cicatrizar as feridas da Brasilidade, entre elas a escravidão e o genocídio das mulheres indígenas – sim, hoje o texto é só para elas, as mulheres.

Não tenho a menor intenção – muito menos expertise musical – para dizer se a menina canta bem, se terá um futuro como artista.  Não faço a menor ideia. Apenas fiquei absolutamente absorto pela ideia de uma jovem cantora se deixando caminhar – livre e docemente – por uma vie en rose, cuja cor, na verdade, já não deriva mais do “sonho cor-de-rosa” de estar sob os braços do homem amado – esses eram os anseios de uma jovem cantora do pós-guerra, por muitos anos famélica, maltratada, talvez abusada e exposta a duras adversidades, que via na proteção masculina – do macho –  o seu mais almejado fim – nem Piaf, acreditava nisso, sabemos, mas era por onde seus acordes geniais conseguiam ser ouvidos e tinham ressonância, naquele instante da civilização ocidental seculovinteana, centrada no homem, como se fosse um décimo-primeiro mandamento.

A vie en rose da menina que conheci nessa madrugada, se tiver cor-de-rosa, deriva, em primeiro lugar, do sangue desbotado pelo tempo de todas as mulheres que sofreram todo o tipo de atrocidade, para que as meninas hodiernas pudessem caminhar por esses tijolos livremente, sem culpa, nem dívida com as heroínas do passado, bastando apenas reinventá-las e torna-las novamente e para sempre, vivas e parte dessa trajetória.

É lógico que a menina que caminha docemente sobre o legado de cantoras negras e destroças pelo machismo e a intolerância mais torpe, como Billie Holliday, me fazem lembrar de um Brasil, no qual a infância e a juventude de milhões de meninasem sua maioria negras ou descentes de índios dizimados – são ainda violentadas, trucidadas e transformadas num rescaldo social que escorre melancolicamente pelos olhares de muitas e muitas mulheres adultas sofridas, que se encontram enlouquecidas pelas ruas, nas unidades de urgência para “drogadas” – sim, me orgulho de fazer parte de um desses serviços –, pelos hospitais e mais triste ainda, nos presídios femininos.

Ainda há um gigantesco caminho a ser trilhado, à espera de pavimentação coletiva, com a contribuição de todos, sem esquecer legados, sempre em busca de desfechos interessantes, no qual as mulheres negras e sofridas desse país terão realmente acesso a políticas públicas para lá de afirmativas, capazes de lhes proporcionar, a partir do esforço de cada uma, espaços de responsabilidade e de tomada de decisão, tanto para si e quanto para a brasilidade-nação.

Enquanto os negros – simbolizando tudo o que se entende hoje por pessoas e comunidades vítimas do racismo e da intolerância –  e as mulheres não estiverem verdadeiramente incluídos, jamais seremos uma nação.  Enquanto dentro de nossa alma cordial-fake-news não tiver um lugar legitimamente verdadeiro para os amores e pulsões da diversidade, que são homo-bi-hetero-pan, misturados em mulheres, homens, travecos e gays e quantas letras mais forem necessárias, jamais entenderemos ou sentiremos dentro de nós mesmos a essência do que é ser gente.  Jamais teremos condição de ensinar ao mundo algo mais sublime e duradouro do que nossa própria música – até aqui o único lugar onde conseguimos nos imaginar em nossa pluralidade e acima de nossas diferenças.  Infelizmente, por ora, me parece inclusive que algumas pedras desse pavimento estão sendo retiradas, para servirem de churrasqueiras, nas quais a brasa de árvores queimadas assam a carne das mazelas desse “povo em formação”,  enquanto testemunham conversas de homens habituados a oprimir e a matar… Acontece que o céu há de azular na linha do mar, mais uma vez e com suas bênçãos, Clemê.

Mas não quero que tanta dor e caminhos a recorrer diminuam ou desabonem os trinos alegres de tão inspirados e o caminhar desavisado de tão bonito da jovem adolescente – claro que essa mocinha já sabe em grande parte por anda, na vida e musicalmente.  Ainda assim, ao convertê-la em heroína, já nesse final de madrugada de mais um de meus anos, por um momento se transformou em portadora dos sonhos de liberdade de todas as meninas desse planeta.

Um presente para mim – com o perdão das leitores e dos leitores, mas hoje, como lhes disse é meu aniversário – nesse dia de pura beleza, emoção e dignidade, seria imaginar minha pequena Helena trilhando incólume esse caminho rosáceo de belezas, mistérios, temores e desafios – por vezes dolorosos e doloridos, mas sem nunca serem opressivos ou cruéis – que a mulher percorre em busca do seu entendimento-mór, algo da ordem do arquetípico, que se constela ao redor de tudo aquilo que compõe a grandeza e grandiosidade da alma feminina.  Que possa desfrutar, nessa trajetória, sempre apoiada incondicionalmente por seus pais, de todos os amores, de todos os tipos e cores, tendo a função ética como seu único parâmetro de verdade.

E no final, ao invés de um texto sobre drogas, dependência química e afins, em meio a acordes adolescentes de legados fadados à eternidade e aos meus pensamentos mais elevados, raiou um domingo magnífico, quase lisérgico de tão perfeito, pleno da feminilidade que nos habilita! Aproveitem o dia!

Dedido esse texto à Ninoca do Paulinho, à Marininha, à Leila, à Malu, à Liz & Bia, à Maria & Glorinha e à Lilica-irmã-do-Antônio, da Jaca, às primas Fernandinha, Kelly, Sarah, à prima Isa mais querida da Lelê, à Dorinha, à Julinha da Carol, à Mari & Jana, à Giuca, à Maria Clara, Ana B & Cecília, à Isabel e a todas as meninas que convivem com minha menina. Muito amadas!

Marcelo Ribeiro, psiquiatra, membro do Programa de Pós-graduação do Departamento de Psiquiatra da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), docente do Curso de Medicina da Universidade Nove de Julho (Uninove), diretor do Centro de Referência de Álcool, Tabaco e outras Drogas (Cratod) da Secretaria do Estado da Saúde de São Paulo, presidente do Conselho Estadual de Políticas sobre Drogas de São Paulo (Coned).    

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