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São Guinefort, padroeiro do novo – e dos usuários em recuperação

Muitos séculos atrás, no tempo em que as cidades floresciam na Europa medieval, uma história curiosa aconteceu nas proximidades de aldeia de Neuville, na diocese de Lion, no sul da França.

Naquela região, nas terras do senhor de Villars, havia um castelo, cujo dono e sua esposa tiveram um filho.  Certo dia, o casal se ausentou da propriedade, deixando a criança sob os cuidados da ama-de-leite.  Enquanto a criança dormia, sozinha em seus aposentos, uma enorme serpente adentrou o local, com o claro intuito de devorá-la.  No entanto, a criatura sorrateira, já debaixo do berço da neonata, fora flagrada em suas intenções malévolas pelo formoso e elegante Guinefort – que também vivia no lugar.

Uma luta de proporções épicas, então, teve início naquele instante, tendo o destino daquela criança como propósito.  Guinefort, armado apenas pelo instinto de preservação, pela bravura, pela lealdade e amor ao seu senhor, abordou de súbito a serpente. A energia inicial do embate virou o berço de cabeça para baixo. Golpes, pancadas, dentadas e mordeduras ensanguentaram herói e vilã, tingindo o Bem e o Mal da mesma cor.

Ao final, Guinefort estava seriamente ferido, mas vitorioso: a serpente jazia no chão. O valente lutador ainda teve tempo de atirá-la para longe, como se buscasse uma garantia de segurança suplementar para a sua protegida, uma vez que sua exígua consciência, extremamente ferida e fatigada, pedia descanso.  Adormeceu pacificamente vitorioso.

Mas o transe meritório de Guinefort foi logo interrompido por um grito feminino de desespero, daqueles que só o sangue humano derramado consegue mobilizar naqueles que o carregam nas veias.  Trágico. O sono profundo e a exaustão física do herói permitiram-lhe apenas um despertar cheio sensações oníricas imprecisas. Hipnopômpico. Um segundo grito feminino acudiu ao primeiro, trazendo mais caos à mente obnubilada de Guinefort. Logo um bradar masculino de desespero foi ouvido, sobreposto, mas em confusão, misturado aos dois primeiros, e, numa fração de segundo, uma lâmina de espada duplamente afiada e de espessura generosa atravessou seu couro, transpassou suas vísceras e lhe tirou a vida. Guinefort, o galgo devotado, ao término do exercício da mais nobre bravura canina, fora morto de maneira injusta, “apesar de inocente e por causa de algo que só podia esperar o bem”.

Ainda resolutos acerca da conduta assassina do cachorro, o nobre, a dama e a ama-de-leite começaram a revirar o quarto em busca dos restos mortais da criança, quando a encontraram, dormindo docemente, debaixo do berço. Atordoados, “descobriram a serpente estraçalhada e morta pelas mordidas do cão”.  Um infortúnio de proporções incomensuráveis. Culpa e remorso tomaram de assalto a consciência daquele trio, não apenas por se mostrar absolutamente incapaz de distinguir o bem do mal, como também por se descobrir tão vulnerável a atuar emoções tão torpes, advindas de ideias decididamente preconceituosas – como aquela que atribuiu a Guinefort uma ferocidade lupina ancestral, deixando de considerar toda sua existência de lealdade e amor incondicional, que sempre o definira, como um sinal de que as aparências por vezes enganam.

A história de São Guinefort – convertido mais tarde em santo pela crença do povo do lugar, desprovido de esperanças na justiça e no amparo dos senhores da região – se assemelha muito com as novas disposições que nascem dentro da psique, em busca de desenvolvimento e protagonismo, como é o caso do propósito de recuperação.

A ideia de uma nova vida desperta no usuário e no seu entorno os melhores sentimentos, especialmente quando suas atitudes iniciais, juntamente com a de seus familiares e da equipe que o assiste, são capazes de transmitir confiança e esperança de um futuro mais estruturado e harmônico.  Acontece que, tal  qual um recém-nascido, aquela nova condição detentora de enorme atrativo, beleza e potencial de desenvolvimento é igualmente delicada e frágil. Vulnerável.  Necessita de proteção, ao invés do que de exposição a perigos e fatores de risco.

A serpente sorrateira, por sua vez, não vive fora das pessoas.  Ela representa justamente o funcionamento psíquico relacionado à manutenção da dependência. Patológico.  Nos primeiros tempos do surgimento do desejo genuíno de recuperação, os sintomas relacionados ao consumo de drogas – tais como a vontade, a fissura e compulsão –, com frequência, parecem ter sido banidos para sempre do mundo mental, a ponto de o dependente – e seus familiares – achar que essa doença é coisa do passado.  Em algumas situações, parece que o verdadeiro milagre do desaparecimento aconteceu. Um engano grosseiro. A serpente foi apenas afastada, mas é da energia criativa da psique, que nutre as funções executivas do processo de recuperação, que ela se alimenta.

Desse modo, permanecerá aparentemente adormecida, até o surgimento de uma porta entreaberta ou de uma vidraça trincada, numa tarde em que a consciência resolveu tirar um merecido descanso ou adormeceu desavisadamente.  Eis o momento propício para o boteO desejo de consumir não pertence ao reino da razão.  Ele é mais parecido com uma predisposição, um instinto, um querer em busca de uma oportunidade de realização.  Por isso deve ser enfrentado com atitudes, nunca com acordos meramente racionais ou sentimentais.  Nosso lado “selvagem” não trabalha com conceitos morais, tampouco faz acordos baseados em códigos de honra – esse é outro departamento: o racional, de natureza cortical, nesse momento desvitalizado e enfraquecido pelo processo patológico da dependência.

Por fim, é essencial considerar que a consciência humana é menos capaz de diferenciar o bem e o mal, o certo e o errado do que ela imagina.  E que a pretensão de se achar competente o bastante de fazê-lo de modo eternamente infalível – “saberei a hora certa de parar”, “já decidi que não vou mais usar” – é sua maior fraqueza e seu flanco mais aberto.

Contrariamente a tudo isso, a consciência é passível de enganos e vulnerável a erros crassos.  Nesse sentido, a história de Guinefort mostra que os atores relacionados ao autocuidado, à estabilidade afetiva e à tomada de decisão, capazes em conjunto de estruturar e proteger o desenvolvimento do processo de recuperação, mesmo considerando-o tal  qual a um filho amado, se envolveram numa sucessão de erros e falsos prenúncios de tragédia, que os levaram de forma impensada, em meio ao estresse e sob o domínio da raiva, a acusar e a matar injustamente o cão-beato, portador de um aspecto elementar da psique:  a espiritualidade, ou seja, a esfera carregada de emoções positivas – “compaixão, perdão, amor, esperança, alegria, fé/confiança, gratidão, todas resultantes da nossa capacidade mamífera de praticar o amor parental desinteressado”.  Reside ali, indubitavelmente, a matriz energética que alimenta as tendências de transformação do psiquismo e de ampliação da consciência – cujo elo de ligação foi extirpado pela razão, obnubilada pela emoção e pelo desespero, como nos conta a história de Guinefort.

O cão e sua “estranha superioridade de sentidos”, capaz de detectar a novidade pelo cheiro do vento e de encontrar idiossincrasias em cada ruído, além de sua “penetrante percepção da sinceridade”, sempre foi considerado, desde as culturas mais remotas, um elo entre a realidade e o mundo espiritual.  Sua extrema lealdade, amor e devoção aos seres humanos, acabaram por transformá-lo em um portador dos mistérios, um guia capaz de atravessar incólume as brumas que separam nosso lado mais humano, daquele que nos faz animais irracionais altamente selvagens e cruéis.

O assassínio de São Guinefort, dentro do espírito da recuperação, simboliza a perda desse guia generoso e guardião devoto do processo de crescimento, amadurecimento e mudança, capaz de converter as emoções mais indiferenciadas e sombrias da mente humana, provenientes do recôndito do inconsciente, em sentimentos altamente nobres e estruturantes no plano da consciência.  Assim como aconteceu na história do medievo, essa essência delicada e singular que emana da psique humana é frequentemente capturada e canalizada por aqueles que pretendem explorar a espiritualidade alheia com propósitos messiânicos, como fazem os charlatões e os falsos profetas, com suas curas milagrosas; assim como as instituições patriarcais, autoritárias e inquisitoriais que se declaram proprietárias e detentoras do monopólio dos seus mistérios, se assenhorando, assim, da chave que abre os caminhos que definem a individualidade humana.

De toda a maneira, na sua ausência, o novo em formação fica invariavelmente à mercê das novas investidas provenientes do mundo irracional, entre elas, os impulsos e os comportamentos compulsivos relacionados ao consumo de substâncias psicoativas, promovendo, frequentemente, descompassos e inversão de prioridades e valores potencialmente letais, tanto para o usuário, quanto para os seus grupos de convívio.

Desse modo, talvez o verdadeiro processo de recuperação consista, acima de tudo, em atingir aquilo que se pretende na vida, desde  que o preço não seja a perda do contato com aquilo que se considera mais essencial, vital, sagrado, ou seja lá o que for  o nome que se achar mais apropriado para definir, da forma mais genuína possível, a individualidade e o lastro de ancestralidade que torna uma pessoa irresistivelmente humana.

Guinefort é esse banho de energia límbica, que emana das estruturas mamíferas inferiores do cérebro, para inundar todas as veredas sinápticas, as quais conduzem os processos de transformação até o âmbito da consciência, a partir da qual as mudanças de atitude se tornam possíveis – o componente espiritual do processo de recuperação.

Na Idade Média, há quase oitocentos anos, Guinefort ganhou um santuário de seus donos arrependidos e passou a ser venerado pelo povo do lugar, especialmente pelas parturientes de rebentos debilitados e com chances remotas de vida.  Acabou se tornando objeto de peregrinação, até os seus restos mortais serem exumados e o seu santuário ser destruído, por obra e  ameaças de punição do Santo Ofício.  Ainda assim, permaneceu vivo e fortemente vinculado à ideia de proteção daquilo que é novo e nobremente frágil.  Certamente nunca ocupou um lugar nas hagiografias oficiais.

No entanto, ao menos no presente artigo – por decisão unilateral do autor, acima de tudo um investigador intrigado pelas nuances da recuperação, cinófilo por questão de escolha, mas casado e pai de mulheres absolutamente apaixonadas por essa espécie que se tornou há tempos a depositária do amor mais genuinamente humano – São Guinefort será considerado, pelo menos até o final dessa leitura que se encerra, o padroeiro do desejo de recuperação, nascituro nas mentes de milhões de dependentes químicos em todo o planeta, todos os dias.  La vie éternelle à Saint Guinefort!

Marcelo Ribeiro, psiquiatra, membro do Programa de Pós-graduação do Departamento de Psiquiatra da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), docente do Curso de Medicina da Universidade Nove de Julho (Uninove), diretor do Centro de Referência de Álcool, Tabaco e outras Drogas (Cratod) da Secretaria do Estado da Saúde de São Paulo, presidente do Conselho Estadual de Políticas sobre Drogas de São Paulo (Coned).

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