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A mancha de óleo no oceano, a travessia do deserto e a estrada com tempo nublado

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O dependente de substâncias psicoativas tem extrema dificuldade em acompanhar os seus progressos e constatar suas melhoras.  Em parte, porque ficou muito tempo aprisionado em sua dependência, alheio às mudanças ao seu redor. Ao longo do desenvolvimento da dependência, passou a mapear o mundo em função do aqui e agora, da próxima dose.  Assim, quando deixa de consumir, qualquer parâmetro de futuro lhe parece longínquo demais, por vezes assustador, outras vezes insuportavelmente entediante.

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Para alguns, de fato, o tempo passou de forma avassaladora e, quando se deram conta havia um longo percurso a trilhar:  conquistar uma qualificação profissional superior partindo do supletivo fundamental, explicar as imensas lacunas presentes em seu currículo ou carteira de trabalho, estabelecer – algumas vezes pela primeira vez na vida – uma rede de amigos, ou namorar, superar o descrédito generalizado de todos os seus grupos de convívio e o estigma social, construir uma infraestrutura pessoal capaz de lhe proporcionar autonomia: emprego, salário decente, casa, além de meios de transporte e de comunicação.

Essa travessia pelo deserto, em alto-mar ou por uma autoestrada até onde os olhos podem enxergar o horizonte – que já seria árdua pela longa distância a ser percorrida – acontece dentro de um ambiente quase sempre hostil: dentro e fora da cabeça do usuário.  Alguns exemplos de fora já foram dados anteriormente e poderiam ser comparados, nessa analogia, a dunas gigantescas, a ondas revoltas implacáveis ou a curvas fechadas enlameadas, todas de difícil superação e indiferentes às frágeis embarcações utilizadas pelo usuário para dar cabo a essa empreitada.

Não bastasse tudo isso, um imenso deserto salino de aspecto alvo e craquelado, uma mancha de óleo que pinta as ondas do mar de um negrume gigantesco, um dia de nuvens carregadas, que rebaixa o céu e o esconde por detrás de uma cúpula cinzenta e ameaçadoramente úmida, todos a perder de vista, refletem exatamente o estado mental do usuário que inicia aquela jornada: quase sempre desprovido de senso de orientação e ânimo, por vezes cognitivamente rebaixado e profundamente deprimido, por mais que sua personalidade desafiadora, irritadiça, impulsiva e empafiosa aparente demonstrar outra coisa.

No entanto, ainda que se lancem por esses desertos com guias experientes, que naveguem por tais ondas com lobos-do-mar que passaram pelos mesmos sofrimentos e percorram estradas em companhia de pilotos extremamente técnicos e de comboios de familiares, mesmo sendo informados o tempo todo pela equipe que estão na direção e no sentido certos, que o branco do sal, o negrume da onda ou o cinza das nuvens rebaixadas até o horizonte não é permanente – mas, sim, uma ilusão de óptica passageira – que aquele vento hostil ou aquela tempestade atemorizante são momentâneos, parte da jornada, que aquela linda mancha azul de mar que apareceu trazendo um alívio, tal e qual um oásis no deserto, ou uma brisa alegre, para logo vir a escurecer novamente no negrume do óleo,  não é sinal de desesperança, mas talvez um sinal de arrefecimento da doença, ainda assim, os usuários de substâncias psicoativas tendem a sucumbir nos primeiros tempos da jornada.

Isso se deve à somatória dos quatro fatores:  primeiro, à incapacidade cognitiva da pessoa recém-saída das brumas da dependência de enxergar para além do horizonte encurtado pelo negrume das ondas, das nuvens de chuva rebaixadas e do deserto do sal, além de se encontrar sem nenhuma sinalização interna capaz para guiá-la, autonomamente, para fora desse mundo.  Segundo, ao senso de sua pequenez, ainda que parcial, perante a extensão dessa imensa jornada – muitas vezes, ainda sem perdas pessoais, mas a perspectiva de nunca mais consumir uma droga, por si só, já é algo muitas vezes inconcebível, representa um esforço desmedido.  Terceiro, à estrutura de apoio e acolhimento que possui, em contraste com o clima de dificuldade, hostilidade e preconceito com o qual tem que lidar e superar. Por fim, à sua estrutura psíquica e às habilidades pessoais, àquilo que ele traz de si para a história, o seu jeito de ser – e suas doenças mentais “primárias”.

No final, histórias bem-sucedidas são aquelas em que o usuário literalmente conseguiu suportar, no mínimo, o entediante mal-estar dos primeiros meses, contando com uma equipe de tratamento acima de tudo negociadora, que soube harmonizar atritos e diferenças e foi incondicionalmente apoiada pela família; em que o usuário foi adequadamente medicado para superar seus transtornos primários, ou, quando o mal-estar e a irritabilidade gerados pela abstinência colocaram seus planos em xeque, o ele teve apoio psicológico, farmacológico, ocupacional – incluindo acompanhamento terapêutico – e conviveu entre pares em grupos de ajuda mútua, inclusive com a participação de familiares.  Possibilidades de ancoradouros ou paradas técnicas em internações breves e comunidades terapêuticas, para cuidados e reparos a “tropeços”, “furos no casco” e “vazamentos de combustível”, que acontecem pelo caminho, também são válidas e geram amadurecimento.

A melhora na dependência química – assim como na psiquiatria de modo geral – vem em saltos:  “repentinamente” depois de um período de aparente marasmo, uma faixa de ondas azuis surge delimitando o negrume do mar, da mesma forma que raios de sol vigorosos irrompem conferindo amplidão ao azul que brota da cúpula acinzentada de nuvens rotas, assim como uma cadeia harmoniosa de montanhas, de um verde-fértil, brota subitamente no horizonte do deserto, juntamente com uma faixa de mesma intensidade verdejante, anunciando um nova disposição no psiquismo daquele usuário.

Tudo resolvido? Muito pelo contrário.  O “tempo avassalador” e “o longo caminho a trilhar” do segundo parágrafo infelizmente não voltaram atrás, tampouco se encurtam novamente.  Navegar é preciso, pelejar é preciso, aprender a tolerar é preciso.  Mas agora e cada vez mais, tendo um mar mais azul e ambientes mais favoráveis por companheiros, dias menos nublados e uma psique mais disponível para saborear as pequenas vitórias e se fortalecer com elas.  O usuário está, agora, mais aberto para o trabalho psicoterapêutico e para o desenvolvimento em grupo.  Mais de meio caminho andado.

Foto: Pixabay

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