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Usar medidas de prevenção para tratar a doença mental é loucura

Caminhadas diárias, higiene do sono, alimentação saudável, gorduras da família “ômega”. Escovação dos dentes após as refeições, uso do fio dental, evitar açúcares. Não há sombra de dúvida de que a esmagadora maioria das pessoas é favorável a essas medidas para, respectivamente, prevenir problemas cardíacos e cáries dentárias. Também é certo que essas mesmas pessoas se espantariam – ou até se indignariam e enfartariam ali mesmo – se chegassem ao cardiologista com queixa de dor precordial aos mínimos esforços e o médico, sem pedir exame algum, lhes recomendasse dormir direitinho, cortar doces e gorduras, tomar leitinho com ômega 3 e remédio para colesterol. Da mesma forma, caso telefonassem para o dentista tarde da noite, urrando e desesperadas de dor, se surpreenderiam de modo lancinante se recebessem como orientação: “mais escovação, mais fio dental e menos sobremesa da vovó essa semana”. Certamente passariam a ter dois problemas: a dor de dente e a necessidade de comprar um aparelho celular novo.

Tudo isso pode parecer esdrúxulo e patético de tão descabido e inusitado. Acontece que, na saúde mental, uma grande parte da opinião pública ainda segue acreditando que medidas preventivas podem tratar quem já está em sofrimento psíquico e o que o médico que diagnostica os transtornos mentais está apenas interessado em medicar, internar ou dar choque, sendo por isso incapaz de enxergar o ser humano como um todo.

Ideias com esse grau de distorção, além de trazer sofrimento, colocam vidas em risco: os transtornos mentais são os mais prevalentes entre as doenças da humanidade contemporânea; segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), pessoas com transtornos mentais graves, tais como a esquizofrenia, o transtorno afetivo bipolar, a depressão e a dependência química, morrem cerca de 10 a 20 anos mais cedo do que a população em geral, em sua maioria por doenças físicas evitáveis. Ainda segundo a OMS, o suicídio mata 1 milhão de pessoas todos os anos e é a segunda causa de morte entre os jovens, atrás apenas dos acidentes automobilísticos. Por outro lado, os mecanismos neurobiológicos que permeiam essas doenças estão sendo elucidados com maestria, sendo que muitas delas já possuem estratégias terapêuticas eficazes – medicamentosas, psicoterápicas e ocupacionais – e as pessoas adequadamente tratadas retornam para suas rotinas e grupos de convívio com imensa qualidade de vida.

De modo que não se trata de uma situação de sofrimento que seja possível resolver “brincando de médico”, utilizando-se “receitas da vovó” ou apenas o bom-senso: “vá mais à praia, o sol lhe revigorará”, “alimente-se melhor”, “livre-se desse relacionamento vampiresco”. Bem mais grave do que isso, muitas vezes, algo semelhante a “uma cárie dentária” ou a “uma oclusão arterial” já se formou no funcionamento cerebral, ou, para não ficar apenas no biológico, uma situação perene de estresse se estruturou e consumiu a pessoa psiquicamente, a ponto de a mesma se achar impossibilitada de suplantá-la . Não será um fim de semana perto da natureza que a fará deixar de acordar de madrugada aos sobressaltos, sentindo sua vida cronicamente inviável: é preciso que se faça um diagnóstico e que um tratamento – psiquiátrico, psicológico e o que for mais necessário – seja instituído e conduzido por profissionais habilitados.

Ninguém põe o coração em risco, tampouco tolera a dor de dente, mas muitos acham que a dor psíquica pode ser suportada e lidada solitariamente, como se pedir ajuda fosse o reconhecimento de uma falha grave ou sinal de incompetência. Para essas pessoas, o sintoma psiquiátrico é “um fardo a ser suportado”, podendo no máximo, ser amenizado por terapias alternativas ou superado apenas por intermédio da espiritualidade. Deste modo, muitas pessoas vivem e atuam socialmente, em consonância com os preceitos éticos mais nobres, mas passam décadas sem entrar em avião – por sintomas de pânico – ou sofrem no âmbito privado, às voltas com quadros depressivos nunca tratados, que se atenuam e se agudizam ao sabor da doença, por falta de medicamentos e de terapia – assim como acontecia na época em que foram descritos pela primeira vez, há quase 250 anos. Mal sabem elas que os tratamentos em saúde mental há muito deixaram de ser meros paliativos, mas sim estratégias que transformam os indivíduos em seres mais autônomos, capazes e satisfeitos com suas próprias vidas.

Nesse sentido, não há nada contrário aqui à ideia do “poder terapêutico” da mudança de hábito e de estilo de vida, da busca pela espiritualidade, das terapias e das medicinas alternativas, da reaproximação do contato com a natureza, da higiene do sono, do banho de sol, tudo isso é fundamental para a construção de um psiquismo mais potente e saudável – elas inclusive podem ser introduzidas desde a primeira hora. Porém, na vigência da doença mental, medidas terapêuticas formais – médicas e psicológicas – devem ser instituídas para saná-la e devolver ao paciente a autonomia que a doença passou a lhe subtrair, a ponto de comprometer sua funcionalidade junto a suas rotinas e aos seus grupos de convívio.

Ao término desse período de crise, agora sim, as medidas de prevenção – ao lado da psicoterapia – passam cada vez mais à condição de protagonismo, ficando o seguimento medicamentoso, a cada retorno médico, convertido em uma mera formalidade, podendo, sempre quando é possível e indicado, evoluir para a diminuição ou até para a suspensão deste. Assim, com um sorriso branco no rosto, o coração tranquilo e a cabeça fria, tomando cuidado para não dar um passo maior do que as pernas podem dar, se encerra aqui a conversa de ‘doutor’, para dar lugar aos causos, histórias e epopeias que dão sentido e tornam para sempre memorável e singular o curso da vida.

Marcelo Ribeiro, psiquiatra, membro do Programa de Pós-graduação do Departamento de Psiquiatra da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), docente do Curso de Medicina da Universidade Nove de Julho (Uninove), diretor do Centro de Referência de Álcool, Tabaco e outras Drogas (Cratod) da Secretaria do Estado da Saúde de São Paulo, presidente do Conselho Estadual de Políticas sobre Drogas de São Paulo (Coned). 

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