Por Marcelo Ribeiro
O medicamento psiquiátrico sempre foi visto com preconceito e desconfiança. Para muitos ele é a prova cabal de que a mente perdeu para sempre sua autonomia. Em geral, para essas mesmas pessoas, a doença mental é um mal desprovido de cura e o medicamento, um mero paliativo ineficaz, uma muleta sem calço de borracha, incapaz, assim, de sustentar a longo prazo qualquer processo de cura. Há ainda aqueles que renegam a existência da doença mental e entendem os medicamentos como um agente “idiotizador” das pessoas, um “ceifador de identidades”, sempre a serviço de alguma teoria da conspiração qualquer. De um lado, um símbolo do fracasso, do outro, da repressão.
Ao contrário de tudo isso, o medicamento psiquiátrico é uma borrifada de água na argila, que torna o cérebro novamente maleável para se adaptar às demandas internas e externas da vida – incluindo aquelas relacionadas ao processo de cura, tais como a psicoterapia e atividades ocupacionais que, na grande parte das vezes são de natureza psicológica, social e espiritual.
O cérebro é um órgão geneticamente programado para ser estimulado sensorialmente. Desse modo, o acolhimento, o zelo e afeto são fermentos essenciais para o crescimento dessa massa, que aos cinco anos já tem quase o tamanho de um cérebro adulto. O oposto disso tudo pode gerar danos ao desenvolvimento cerebral tão ou mais graves e definitivos do que a exposição a infecções ou à desnutrição crônica. Nesse sentido, fatores de estresse como maus-tratos, negligência, abandono, traumas, abusos, bullying podem interferir negativamente no desenvolvimento cerebral, bloqueando a maturação de algumas áreas ou forçando o desenvolvimento precoce de outras que ainda não estavam prontas para funcionar, gerando, desarmonia, desadaptação, sofrimento e doença.
Ao longo da vida, pessoas geneticamente predispostas ao desenvolvimento de certas doenças e expostas de forma perene a situações estressantes no seu cotidiano são candidatas ao adoecimento mental. Conforme a vida adulta vai se consolidando, o cérebro vai perdendo maleabilidade, ou seja, é menos capaz de se adaptar a novas demandas. O envelhecimento diminui a reserva funcional do sistema nervoso e sua capacidade de adaptação, tornando os processos cerebrais ainda mais “burocráticos”. São fenômenos – naturais ou traumáticos – capazes de “ressecar” a massa cerebral, impedindo que soluções criativas e bem-adaptadas sejam evocadas prontamente frente à presença de novas demandas, o que quase sempre leva a mais sofrimento e ocasiona processos de doença.
O cérebro é dotado de neuroplasticidade, ou seja, da capacidade de reorganizar sua estrutura, funções e conexões para responder a estímulos internos e externos. Conforme já foi dito anteriormente, essa capacidade vai se esvaindo naturalmente ao longo da vida, mas também pode ser afetada pelo estresse, especialmente quando esse se instaura de modo perene na vida das pessoas – uma criança permanentemente aflita pela chegada do pai embriagado e violento todas noites, um jovem temeroso pelo tipo de bullying que sofrerá naquele dia ao chegar à escola, um adulto que não consegue sair de casa há três meses por conta dos seus rituais obsessivos-compulsivos, são fatores permanentes de “desgaste”, “atrofia” ou “ressecamento”.
Nessas situações, os medicamentos psiquiátricos são capazes de aumentar a atividade de regiões de cérebro que se desenvolveram aquém do que deveriam ao longo do desenvolvimento infantil e da adolescência ou que se atrofiaram (“ressecaram”) em decorrência da exposição prolongada ao estresse ou do curso de alguma doença mental. Isso pode se dar tanto pelo surgimento de novos neurônios – hoje sabemos que regiões ligadas ao processamento das emoções, como o hipocampo, são capazes de gerar novos neurônios –, quanto pela modificação estrutural de neurônios maduros, criando novos prolongamentos (axônios) – ou adensando os existentes –, bem como multiplicando os terminais de conexão com outros neurônios e sistemas de neurotransmissão (dendritos e sinapses). Pense-se na profusão de brotos e inflorescências num jardim outrora assolado pela seca, mas recentemente aguado, adubado e podado com cuidado e esmero.
De modo que os medicamentos psiquiátricos, longe de serem “idiotizadores” ou “prisões químicas”, não são da mesma forma “pílulas de felicidade” ou “a-solução-para-a-vida-numa-caixa”. Medicamentos psiquiátricos são agentes de um processo terapêutico que permitem à pessoa, a partir do aumento da neuroplasticidade cerebral, diminuir ou remitir sintomas psiquiátricos disfuncionais e tornar o cérebro mais apto para atender às demandas pessoais e do ambiente. Quanto mais competente ele se mostrar do ponto de vista biológico e quanto mais amparado ele estiver do ponto de vista psicossocial, mais adaptada será essa resposta, com ganhos significativos para a qualidade de vida. Não adianta melhorar sintomas depressivos ou ansiosos, se esse “ganho energético” obtido com o desaparecimento dos sintomas não for utilizado na ampliação do campo vivencial, na resolução dos conflitos e na remoção de barreiras geradoras de estresse. É esse trabalho, que ao final, se converterá em patrimônio psíquico, o qual sobreviverá, inclusive, à redução ou mesmo à retirada da medicação, em alguns casos. Afinal, não faz sentido borrifar a argila, se não houver a intenção de transformá-la numa bela expressão da criatividade humana.