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“Raf fala com profundidade, enquanto a moda tende a ficar na superfície”, diz diretor de “Dior e Eu”

Por Carol De Barba

“Dior e Eu”, o documentário sobre a primeira coleção de Raf Simons para a maison francesa após o escândalo da demissão de John Galliano, estreia nesta quinta (27), em São Paulo. Distribuído pela Imovision, o filme está em cartaz em quatro cinemas: Reserva Cultural, Cinemark Cidade Jardim, Espaço Itaú Frei Caneca e PlayArte Bristol.

O documentário mostra a chegada do contemporâneo criador belga à tradicional casa francesa, e a corrida contra o tempo para montar em apenas oito semanas uma coleção de haute couture – o patamar mais alto, complexo, trabalhoso e caro do mundo da moda. Raf tem ainda um desafio interno: encontrar um equilíbrio entre sua personalidade low profile e uma maison habituada aos holofotes.

RG conversou com o diretor do filme, Frédéric Tcheng (ele também esteve por trás de “Valentino, o último imperador” e “Diana Vreeland, the eye has to travel”), sobre a produção. “Estive no Reserva Cultural e havia um grande pôster de ‘Dior e Eu’ ao lado de ‘Adeus à Linguagem’, do Godard. Só pensava: ‘meu Deus, coisas estranhas acontecem na vida’”, brincou, sobre seu primeiro impacto com a repercussão do filme no país.

“Eu vejo a Dior como uma instituição. Você pode falar sobre a sociedade por meio de uma casa como aquela. As costureiras são a classe operária, os criadores são internacionais, enfim, sinto que detalhes como esses refletem o mundo”, avalia. Leia a entrevista completa a seguir.

Como tudo começou? Você se interessou pelo projeto por causa da Dior ou de Raf?
Eu estava interessado na combinação dos dois. Mas devo dizer que se fosse outra pessoa, talvez não fosse tão interessante. O filme começou com uma conversa com a Dior. Na época, eu não sabia quem seria o designer. Comecei a pesquisar sobre Raf Simons e foi muito difícil encontrar informações, fotos dele, o que já me atraiu. Alguém que não está nos holofotes, que não está na moda pelas razões erradas. Li suas entrevistas e percebi que falava de moda com significado, como um artista fala suas obras, muito confortável com conceitos. Ele fala com profundidade, enquanto a moda tende a ficar na superfície. Senti que Raf Simons era o caminho para falar de moda de um jeito novo, longe dos estereótipos e mais próximos das pessoas e do processo criativo.

Você decidiu isso com base na experiência dos outros filmes?
Sim. Sempre faço um filme em reação ao anterior. Não estou interessado em me repetir. Então, tenho muito cuidado ao escolher temáticas. Espero até me apaixonar pelo assunto. Não há ninguém tão diferente de Raf Simons quanto Diana Vreeland, excêntrica, fantástica. Raf não fantasia, ele é muito real, de um jeito que se conecta com a minha sensibilidade. Estou interessado em ir além da moda, tenho uma relação complicada com a moda.

Por que?
Porque a moda é um mundo estranho onde imagem é, às vezes, o único meio de comunicação, o que é um pouco limitador. Sempre amei filmes, essa é minha real paixão, e sinto que quem trabalha com cinema não compreende direito a moda. Eles não assistem a fashion films porque são sobre moda. Então, estou sempre tentando convencer as pessoas de que moda é interessante se você olha para as coisas certas, para as pessoas certas.

Se Raf é real e Diana é excêntrica, como é Valentino?
Apesar de não dirigir, eu estava muito envolvido. O filme sobre Valentino era uma certa homenagem a uma era da cultura europeia. Uma celebração da ‘dolce vita’. Então, era muito sobre o passado. Também foi uma grande aventura em termos de documentarismo para mim. Aprendi o ofício, percebi que sentia muita liberdade no gênero. Ficção pode ser intimidadora, pois você tem que criar um mundo todo. Documentário é mais próximo à minha personalidade, porque sou mais contemplativo.

A Dior interferiu em algo?
Eu tive muita liberdade durante as gravações. O que aconteceu foi que conversamos muito antes sobre o que eu queria fazer. Falamos sobre eu não estar interessado em promover a marca, em ser um porta-voz da Dior. Meu trabalho era realmente sobre fazer um filme para passar no cinema, para o grande público. Isso requer muito acesso, muito envolvimento, gravar muito, e eu precisava ter certeza que eles estivessem cientes disso. Também expliquei que era algo mais pessoal, mais ligado às pessoas do que à marca. Então, isso evitou muitos mal entendidos. Mas sempre acontecem coisas do tipo Raf Simons não querer ser filmado em alguns dias. Todo dia você tinha que lutar pelo seu espaço de uma forma gentil. Não sou um mercenário e minha meta não é alienar as pessoas.

Como você fez para transitar quase que invisível pela maison?
Primeiro, com uma equipe muito pequena. Eram apenas duas pessoas, geralmente eu e alguém para o som, e nos alternávamos. Também tento escolher pessoas com uma personalidade parecida com a minha. Gentis. Se você quer ser um documentarista, você não pode ser muito extrovertido. Você tem que ter uma personalidade um pouco mais contemplativa. Tem que ser capaz de criar conexões com os sujeitos, capaz de evocar uma certa atmosfera de intimidade.

Em Valentino, o criador pedia muito para desligar a câmera. Isso não aparece em Dior. Vocês optaram por não mostrar ou realmente não aconteceu?
Aconteceu um pouco. Há uma cena em que Raf está chateado porque uma das chefes do ateliê é enviada para Nova York. Ele pediu para que nos afastássemos algumas vezes. Ele estava muito nervoso naquele dia, porque estava vendo seus desenhos pela primeira vez, não sabia como seriam e como ele reagiria. Havia eletricidade no ar e eu podia sentir. Naquele dia, eu estava com um câmera, Gil Picard. Gil foi repreendido algumas vezes por Raf até que assumi a câmera. Eu já tinha estabelecido uma relação mais próxima com Raf e imaginei que, de certa forma, ele confiasse mais em mim do que no meu câmera. Eu estava muito nervoso, achei que não íamos sobreviver a esse dia.

Você tem uma cena favorita?
Tenho, mas não é a óbvia. É uma cena muito quieta, em que algumas costureiras e estagiários estão trabalhando em um vestido. É no andar de cima, está tudo muito quieto e muito escuro. Estão todos trabalhando no mesmo vestido. Para mim, é meio que uma metáfora do que é o filme, um grupo de pessoas colaborando para fazer um vestido. Não é apenas uma pessoa que faz o vestido. É realmente um time.

Por que Galliano nunca é mencionado no filme?
Foi uma escolha que fizemos na edição. Tínhamos uma parte sobre Galliano no começo, apenas imagens de notícias. A primeira versão do filme tinha quase duas horas, tentamos nos livrar de tudo que não era essencial. Também porque sentimos que a história de Galliano tinha sido muito explorada pela mídia.

Em ‘Valentino’, havia uma espécie de vilão – o investidor. Desta vez, não havia ninguém que representasse esse personagem.
Acho que o vilão está dentro da gente. Raf Simons é seu próprio obstáculo. As costureiras também tem que passar por uma mudança para aceitar a presença de Raf. Ele também tem medo do público, de tornar-se essa figura pública, um conflito que mostramos por meio da presença de Christian Dior como um fantasma. Acho que é um filme muito introspectivo, onde não há vilão e mocinho. É mais sobre a relação íntima que você tem com seu processo criativo.

Christian Dior, quando criou seu ateliê e o New Look, capturou como ninguém o espírito daquele tempo. Você acha que Raf consegue isso?
Acho que não acontece da mesma forma. Não consigo pensar em um criador que tenha entendido o zeitgeist como Dior, Chanel ou Yves Saint-Laurent nos anos 1970. Acho que o mundo também mudou, se globalizou, as coisas acontecem simultaneamente. Ideias existem ao mesmo tempo, não sinto que exista apenas uma grande ideia. Talvez eu esteja errado e em 10 anos o que Raf fez seja revolucionário. Mas não sei.

E para o futuro, você já tem um novo projeto?
Sim, é um filme de ficção. Não é sobre moda, mas é sobre um artista. Espero filmar no próximo ano. Não posso falar muito porque as coisas não estão totalmente definidas, mas é uma história de amor que se passa nos anos 70.

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