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Namorar é a nossa revanche

O mercado arma um complô para nos propiciar incríveis experiências solitárias… queremos ser autossuficientes ou estabelecer relações, na real?

por Fred Melo Paiva

O caro leitor há que se lembrar da música: “Ela quer viver sozinha, sem a sua companhia e você ainda quer essa mulher. Ela goza com o sabonete, não precisa de você, ela goza com a mão, não precisa do seu pau”. Desculpe pelo pau – foi o Arnaldo Antunes que disse, em “Essa Mulher”, do CD Paradeiro. O Arnaldo matou a cobra e mostrou o dito cujo: cada vez menos gente precisa do outro.

Na verdade, cada vez menos a gente é a gente. E cada vez mais somos tão somente “consumidores”, essa entidade que deveria ser ser escrita com maiúscula, assim como Deus – Consumidores. Somos o ponto do Ibope, o público-alvo, o código NET. O mercado – Mercado – vai desenhando a gente de acordo com suas demandas, e não com as nossas. Quando morreu o Steve Jobs, você se lembra de como celebramos sua genialidade: ele tinha inventado coisas que a gente nem sabia que precisava, como o iPod, o iPad, o iPhone. Mas já reparou como cada um desses gadgets, hoje “indispensáveis”, proporciona experiências exclusivamente individuais? Mesmo que possibilitem a comunicação entre uns e outros, que triste efeito colateral provocaram nos casais que vão aos restaurantes: a cada cinco minutos, uma das partes confere o e-mail, o Facebook, o Twitter. Já falei para uma amiga que sua academia deveria oferecer ginástica para os dedões e indicadores das mãos – desde o advento da masturbação que não trabalham com tanta volúpia.

Quando surgiu o Walkman, os humanistas se aterrorizaram – a experiência coletiva, tão agregadora, foi transformada em algo alienante, egoísta e ridícula (ou não é ridículo o sujeito tentando cantar a música que vai exclusivamente aos seus ouvidos?). Hoje, ninguém parece horrorizado com a disseminação dos fones de ouvido. Ao Mercado interessa muito mais que você passe a vida em carreira solo. Senão, como explicar que tablets e computadores individuais tenham evoluído várias gerações, e o mesmo não aconteceu com a internet, que era pra estar na televisão da sala?

Antes, famílias tinham um ou dois carros. Hoje, os empreendimentos imobiliários dedicados a elas reservam cinco, seis vagas na garagem. No engarrafamento, você olha em seu entorno e a maioria das pessoas está sozinha no carro – uma cápsula de uma tonelada, para levar 60 quilos. Nos apartamentos, onde cabem tantos automóveis, os quartos são autossuficientes: têm banheiros próprios, televisões próprias. O telefone fixo instalado no espaço comum da copa ou da sala tornou-se obsoleto. Cada um conversa no seu canto, munido de seu smartphone. Antes, apartamentos para solteiros constituíam a rebarba do negócio imobiliário. Hoje podem custar R$ 2 milhões.

Você pode me dizer que as redes sociais são a antítese do mundo individual – o outro lado da moeda. Mas nelas impera a ditadura da felicidade, falsa e higiênica como a publicidade da margarina. A gente olha no Instagram e, lá no fundo, deseja compartilhar também um pouco dos problemas. Vê toda a falação no Twitter e quer um minuto de silêncio. Namorar alguém, em carne e osso, é a nossa revanche contra o sistemão – a gente ainda quer estar perto, dormir de conchinha numa noite fria, fazer sexo real, falar trivialidades no lugar de filosofar no Facebook, encontrar alguém quando chega em casa, fazer planos a dois, falar mal dos outros. Essas coisas vintage das quais a gente anda esquecido. Namorar é lembrar que o amor só é individual no caso da saudosa paçoquinha de outrora.

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