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Entrevista: Walter Salles

Numa entrevista exclusiva para RG, o cineasta conversa sobre “Na Estrada”, baseado na obra de Kerouac

Por Jeff Ares

O longa Na Estrada está nos cinemas. Na edição de junho de RG, antes da exibição no Festival de Cannes, conversei com o diretor Walter Salles, que encarou de frente a obra que definiu o movimento beat e abriu caminhos para a liberdade intelectual e sexual que hoje te permite viver mais intensamente.

Já assistiu ao filme? Aqui, a nossa conversa, pra te fazer cair na estrada.

RG: Você leu Kerouac em que momento da sua vida e que efeito ele teve em você?

Walter Salles: Li o romance pela primeira vez aos 18 anos. Fiquei impactado com aqueles personagens que viviam à flor da pele, à procura de formas diferentes de liberdade, para quem o sexo e as drogas eram maneiras de ampliar sua percepção do mundo. Pé na Estrada era o contraponto do Brasil dos anos 70 em que vivíamos. Também fiquei marcado pela liberdade da narrativa, diretamente influenciada pelo jazz e bebop. O Apanhador no Campo de Centeio, do Salinger, tinha sido uma leitura marcante, mas Pé na Estrada foi dez vezes mais. Acabei voltando várias vezes ao romance. É como um amor de juventude que resistiu ao tempo.

RG: Adaptar uma obra literária da dimensão de Pé na Estrada deve encerrar o prazer de um grande desafio e o medo de um grande desafio. Esses sentimentos se misturaram muito nestes sete anos?

WS: Sim, e isso também aconteceu com Diários de Motocicleta. Toda adaptação implica numa grande responsabilidade. Bem maior do que quando se trabalha a partir de ideias originais, como eram Central do Brasil, Terra Estrangeira ou Linha de Passe.

RG: Que temas intrínsecos à obra você considera mais relevantes para o jovem deste tempo, que tomará contato com Kerouac e os beatniks através do seu filme?

WS: O fato de que, nesse rito de passagem da juventude à idade adulta, os personagens principais têm a coragem de experimentar na primeira pessoa, de viver de verdade e não por procuração. O oposto daquilo que se convencionou chamar de “tele-realidade”, por exemplo, em que tudo é experimentado à distância, em frente à televisão.

RG: O processo de escolha dos atores seguiu algum parâmetro determinado? Houve surpresas na escalação? Quem te surpreendeu mais profundamente?

WS: O elenco se construiu ao longo do tempo, porque o filme demorou oito anos para se tornar realidade. Kirsten Dunst foi a primeira atriz que contatei para interpretar Camille. Gosto muito de sua maneira de atuar, sempre justa, precisa. Organizamos testes de elenco nas costas leste e oeste dos Estados Unidos, que nos ajudaram a descobrir jovens atores muito talentosos. Garrett Hedlund veio do interior de Minnesota, onde ele morava num sítio com o pai, para o teste do filme em Los Angeles. No caminho, escreveu um texto que ele leu em alta voz, e que parecia ter saído da boca de Neal Cassady. Logo depois, interpretou duas cenas e ficamos todos impressionados com o seu talento. Quando vi o filme Control, fiquei impactado pela atuação de Sam Riley. Quando ele veio até Nova York para ler o roteiro com Garrett, o duo principal do filme começou a existir. A escolha de Kristen Stewart começou de forma inusitada: Gustavo Santaolalla e Alejandro Iñarritu tinham acabado de ver a primeira montagem de Na Natureza Selvagem, de Sean Penn, e me disseram: “Para Marylou, você não precisa procurar mais ninguém… há uma ótima jovem atriz no novo filme de Penn”. Quando vi o filme e conheci Kristen, ela me disse que Pé na Estrada era seu livro de cabeceira, e que sempre quis fazer o papel de Marylou. O casting principal começava a tomar corpo. Mais tarde, quando a MK2 tornou o filme possível, convidamos atores que eu admiro imensamente, como Viggo Mortensen e Steve Buscemi. Além do talento que têm, são pessoas próximas do espírito do livro. Com Alice Braga eu sempre quis trabalhar, e ela trouxe uma luminosidade única ao papel de Terry, uma jovem imigrante que Sal, o narrador do filme, encontra na estrada.

RG: Um filme de estrada, como uma viagem, deve reservar uma epifania ou outra. Alguma desta vez?

WS: Quando você pega a estrada e se distancia do ponto de partida, você ganha uma nova perspectiva sobre o mundo. Entende melhor de onde você vem, quem você é, e eventualmente adquire a possibilidade de eleger os caminhos que você vai querer seguir no futuro. É o que acontece em Diários de Motocicleta, por exemplo. É um rito de passagem que acaba desaguando numa vocação. Os filmes de estrada permitem que as trajetórias pessoais sejam redefinidas, mas também ensejam uma perda. Uma parte de quem somos, ou de quem fomos, fica naquele ponto de origem. Na Estrada fala disso, do muito que se aprende na estrada, mas também das perdas sofridas no caminho.

RG: Ritos de passagem interessam ao seu cinema, muitos de seus personagens estão em formação. São alegorias de uma vontade de educar o olhar pelo cinema, de tocar um espectador brasileiro, também em formação cultural?

WS: Eu sou daquela geração que teve a oportunidade de ser educada pelo cinema, no sentido em que eram os filmes que nos traziam notícias do mundo. Você ia ver os filmes de Fellini, e uma parte daquele riquíssimo imaginário nos dava a entender o que poderia ter sido a Itália num dado momento da sua história. Não acho que isso se tenha perdido inteiramente, embora a multiplicação de imagens faça com que o cinema seja hoje muito menos predominante na formação do olhar do que já foi no passado. Mas, quando vejo um filme como Em Busca da Vida, do Jia Zhang-Ke, acabo aprendendo coisas sobre a China que eu jamais poderia ter imaginado antes de entrar na sala de cinema. O mesmo pode ser dito de As Canções, o último filme de Eduardo Coutinho, ou o seu maravilhoso Jogo de Cena. Há aspectos da alma humana que são revelados ali, com uma rara inteligência e sensibilidade, e que eu desconhecia. Para isso é que ainda serve o cinema.

RG: Qual é a cor do seu filme?

WS: Vamos começar pela textura. Filmamos em 35mm e não em digital, para ter aquele grão do registro fotográfico dos anos 50 e 60. As cores são fortes, os pretos densos, a câmera constantemente na mão.

RG: Qual é o som do seu filme?

WS: Como não poderia deixar ser, o bebop e o jazz.

RG: Qual é o cheiro do seu filme?

WS: O do negativo, talvez um dos últimos filmes realizados neste suporte, infelizmente.

RG: Qual é a voz do seu filme?

WS: A do narrador, Sal Paradise, o alter-ego de Kerouac. Como a narrativa acompanha jovens que exploraram todas as possibilidades a sua frente, é a voz do narrador que dá sentido à história, que traça um vetor de desenvolvimento. Na Estrada é também a história de um livro em construção, que Sal está escrevendo.

RG: O que esperar da exibição de Cannes? Te assusta a crítica, e o clichê de que um filme nunca será melhor do que a obra literária original?

WS: Um filme nunca será melhor do que a obra literária, ponto. Para mim, isso é ponto pacífico, e por isso é que é tão importante voltar ao livro. No Brasil, ele conta com uma ótima tradução, do Eduardo Bueno, então vale duplamente a pena. Como o filme estreou na França no dia 23 de maio, já saíram várias críticas francesas e elas são até agora boas. Cannes é o lugar onde os filmes nascem, para o bem e para o mal. A cada ano, 1800 filmes são enviados para o festival, que seleciona 20 ou 21 em competição. Você acaba se encontrando por alguns momentos ao lado de cineastas que são os seus mestres, e de jovens cineastas com muito talento. É como se, no futebol, você fosse convidado para jogar uma vez ou outra no Camp Nou, o estádio do Barcelona. É, no mínimo, um desafio.

RG: Que histórias te faltam contar?

WS: Existem algumas idéias em desenvolvimento, todas no Brasil e na América Latina. Adoraria voltar a filmar com Fernanda Montenegro, seria um privilégio e tanto. Mas, antes de mais nada, preciso dar tempo ao tempo. Quando Na Estrada começou a tomar forma, há oito anos, a minha vida era diferente. Hoje tenho dois filhos pequenos, e o cinema deixou de ser a coisa mais importante para mim.

RG: Algo mais a dizer?


WS
: Obrigado!”

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