Por Juliana Vilas para RG
Pirataria, um negócio da China
Cláudia, 34 anos, é aluna de letras de uma universidade em Paris. Na capital francesa, o custo de vida é alto… Vira e mexe, ela faz freelances. O mais recente foi para um chinês. Na mesma Paris está Marine. Nasceu numa família francesa abastada. Já tinha mais de 25 anos quando veio o revés: a empresa do pai faliu e o orçamento diminuiu. E, sabe como é… O custo de vida na capital francesa é alto, então ela reforça o orçamento organizando viagens culturais e de consumo. Geralmente, leva grupos de amigas e conhecidos para lugares como Xangai, na China. O serviço que Cláudia prestou ao cliente oriental exigiu pouco esforço. Um sonho para muitos: acordou, tomou um belo banho, escolheu o look mais chique, o perfume mais caro. Recebeu cerca de 5 mil euros e saiu, linda. Entrou na Hermès, pediu uma bolsa modelo Birkin, recém-lançada, tomou café, papeou com as vendedoras. E saiu, linda. Reencontrou o cliente chinês, longe de casa, entregou a bolsa e recebeu quase o mesmo valor da peça, em dinheiro, pelo serviço prestado. Obrigada. Xie xie. Merci. Marine e as amigas chegaram em Xangai. Elegantemente vestidas, excitadas e ansiosas. No dia seguinte, viveriam uma situação sensacional. Pouco antes do horário, lá estavam. Um trio de moças chinesas chegou, vendou as cinco amigas. Foram conduzidas a um carro. Elas não viram, mas passaram por vielas, quebradas, andaram uns 5 quilômetros e pararam. Desceram do carro, passaram por uma porta, que se fechou. Quando tiraram as vendas, o mundo dos sonhos se descortinou. Vários modelos de bolsas Hermès, Dior, Chanel, Gucci… Todas perfeitas, aparentemente verdadeiras, por preços três vezes abaixo dos praticados nas lojas das marcas. Pagaram em dinheiro. Xie Xie. Merci.
Essas histórias são reais – os nomes foram trocados para proteger os entrevistados – e representam um dos muitos elos da intrincada cadeia da falsificação de peças de grife. A pirataria é o crime do século 21, bradam especialistas. Nunca foram produzidos, importados e consumidos tantos “fakes” no mundo. Replicar, copiar e plagiar são atos corriqueiros e aceitáveis, apesar de ilegais. O britânico Marcus Boon, que acaba de lançar o livro In Praise of Copying, garante que o ato de copiar obras, métodos ou qualquer criação sempre existiu na história da humanidade. Mas confirma: “A geração 2.0 potencializou o ato de replicar”, referindo-se desde a reprodução de obras literárias, passando pelas searas musical e cinematográfica e, sim, pela falsidade preferida dele, enquanto estudioso do fenômeno: a das réplicas de grife.
Bolsas com etiquetas famosas podem ser encontradas em polos de comércio popular espalhados pelo Brasil a preços convidativos – menos de 10% do valor original. A maioria é cópia grosseira, que um olhar atento é capaz de comprovar. O advogado Rodolpho Ramazzini, da Associação Brasileira de Combate à Falsificação (ABCF), aponta que 85% dos pirateados que chegam ao Brasil são cópias indisfarçáveis fabricadas na terra de Mao Tsé-tung. Outra parte é formada por réplicas perfeitas, idênticas ao modelo original, também chinesas. E há, ainda, uma parcela menor, formada por produtos originais de fato, desviados das linhas de montagem das grandes marcas. Ao lado da sala de reuniões de Ramazzini há um “museu” de peças falsificadas, apreendidas em mais de 30 anos, desde que seu pai, Fernando, começou a investigar as quadrilhas, nos anos 70. Falsifica-se de tudo: amaciantes, isqueiros, canetas e bebidas. “No total, a indústria nacional perde R$ 20 bi por ano com esse mercado paralelo”, calcula. No museu da ABCF, há os exemplares originais, ladeados pelas réplicas.
Certos detalhes entregam a pirataria, como tonalidades em rótulos e logos. Mas não se pode negar que os copiadores têm lá algum talento. Há réplicas que impressionam. Em Zhongguancun, Pequim, a notícia de uma fábrica nova, filial de uma multinacional, deixou a cidade em polvorosa. Mais empregos, tecnologia e combustível para a economia chinesa. Os acionistas também estavam entusiasmados. China = mão de obra barata + mercado consumidor de luxo numeroso. Um exército de chineses foi recrutado. O artesão e o designer viajaram horas para treinar a tropa de trabalhadores locais. Quando a filial comemoraria quatro anos, uma outra fábrica, quase idêntica, foi inaugurada, na mesma rua. Mesmos produtos, capital 100% chinês. As grandes marcas ficam vulneráveis à ação dos piratas porque sofrem espionagem industrial, segundo Ramazzini. “Para abrir uma fábrica na China, as corporações têm de formar joint ventures com o governo, que fica com 40% do bolo. Contratam e treinam para produzir peças idênticas, e com o mesmo padrão de qualidade da matriz. Pouco tempo depois, é fácil encontrar uma indústria igual, 100% nacional, produzindo réplicas em larga escala.” Para as marcas, a viagem que começou bem, para expandir o mercado e cortar custos, transforma-se num naufrágio.
Representantes das marcas preferem não se manifestar sobre o assunto. Mantêm agentes jurídicos nos países em que as quadrilhas agem. Os procuradores investigam, abrem processos e participam de apreensões, em operações com policiais e promotores. “Em 2009, a Louis Vuitton iniciou 9.489 ações (39 por dia) e 26.843 procedimentos antifalsificação em todo o mundo, apreendendo milhares de produtos e desmontando organizações criminosas”, garantem os representantes da marca em Paris. Na Hermès, há controle: nem todos podem comprar todos os modelos nas lojas. E a quantidade de peças por comprador também é restrita. Atentos às quadrilhas, funcionários desconfiam de novos consumidores que tentam adquirir mais de três unidades do mesmo modelo. Na matriz, onde a brasileira Cláudia comprou a Birkin, é necessário agendar horário. E as marcas alertam: não há e-commerce. Logo, bolsas à venda fora das filiais são, provavelmente, réplicas. “A autenticidade dos produtos é garantida na rede de distribuição exclusiva da Louis Vuitton. Os originais são vendidos somente nas lojas que pertencem à marca”, completa o comunicado da maison.
“A falsificação é uma atividade lucrativa, que movimenta quase o mesmo que o tráfico de drogas”, atesta Luiz Cláudio Gare, consultor do Grupo de Proteção à Marca (BPG). E quanto as empresas perdem? “O prejuízo é relativo. No mercado de luxo, a massificação da marca é o pior, uma perda que não pode ser contabilizada.” É que os consumidores “AA” dificilmente compram réplicas que custam um décimo do valor da original. Logo, a grife não perde esse cliente para os piratas. “Pode perdê-lo a longo prazo, se todo mundo estiver usando uma bolsa falsa igual à dele, pela qual pagou bem mais”, compara. Ok, clientes reais das grifes de luxo não se deixam enganar por cópias piratas a preço de banana, mas podem ficar confusos se encontrarem uma bolsa Sukey, da Gucci, por R$ 1 mil na internet. Se o preço da original é R$ 3 mil, é possível imaginar que o vendedor pagou menos imposto – se pagou –, ou está liquidando. Há alguma chance de um cliente Gucci acreditar que receberá em casa um exemplar de origem. E, para economizar R$ 2 mil, perde R$ 1 mil. “Os web vendedores causam prejuízo às marcas porque enganam o consumidor. Publicam fotos das originais e quem compra só nota quando recebe. Poucos denunciam. Ficam envergonhados”, diz Gare.
Os piratas de grife usam várias rotas para trazer produtos chineses ao Brasil: via Chile e Estados Unidos, pelos oceanos Índico, Pacífico e Atlântico. No portos, a fiscalização ainda carece de aparelhamento. Mas o mar ideal para os receptadores é, sem dúvida, a internet. Na rede mundial, é possível comprar uma Birkin, da Hermès, por R$ 2 mil. O vendedor apresenta até a foto do cartão de autenticidade. Se a verdadeira custa, no Brasil, R$ 35 mil, que tipo de peripécia terá feito o tal vendedor para negociar originais a preços tão baixos? Lançando mão do jeitinho brazuca, o vendedor de codinome Abelardo é bem cotado no Mercado Livre, o principal leilão virtual do país. Oferece a Birkin por R$ 1.200. Deixa a mensagem: “Trabalho no Porto de Santos. O melhor preço está aqui, por isso só aceito depósito bancário. Só trabalho com produtos originais”.
É possível que boa parte dos e-compradores não se incomode em adquirir produtos do tipo “parece mas não é”. No entanto, os e-vendedores garantem que as peças não são falsas. Prometem nota fiscal. No oceano digital, leilões, shoppings e classificados destacam a reputação dos vendedores. Alguns têm avaliações positivas. Uma análise amiúde, no entanto, intriga: os comentários são muito semelhantes, listas de frases meio repetidas, como “vendedor muito atencioso, produto entregue” ou “excelente negociação. Recomendo”. Ou ainda: “Que bolsa maravilhosa estou criando inveja as (sic) minhas amigas! Vendedor (…) entregou na data e hora marcada”. Esta útima esclarece como a cadeia foi criada e como sobrevive: não existe mercado sem demanda…