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“A Cidade dos Piratas” traz parceria entre Laerte e Otto Guerra

Uma das obras mais polêmicas do diretor Otto Guerra,”A Cidade dos Piratas”, faz uma mistura underground e caótica entre ficção e realidade sobre as vidas particulares de Laerte Coutinho e Guerra. O filme é construído por meio de uma série de referências dos quadrinhos de Laerte, e do cinema do próprio diretor, além de buscar através da história do Brasil – inclusive fatos associados à história recente – fazer uma reflexão sobre a arte, a cultura pop e a política.

Com distribuição da Lança Filmes, o filme chegou ao circuito nacional no dia 31 de outubro.

A animação é desenvolvida a partir de personagens dos quadrinhos “Piratas do Tietê”, que passam a ser rejeitados por sua criadora, Laerte, quando ela se afirma transgênero, assumindo sua identidade feminina.

“Para a Laerte, os Piratas e outros universos de sua criação, ficaram superados. Ela dizia que os Piratas funcionavam nos anos 80, mas que hoje ela considera eles machistas. Eu também concordava que suas criações mais recentes eram muito melhores. O projeto do filme iniciou em 1993, evidente que o mundo evoluiu e tratamos de nos adaptar a essa nova fase da autora.”, diz Guerra.

Amigos e contemporâneos, Guerra e Laerte beberam nas mesmas fontes dos anos 70. Assim como Angeli e outros quadrinistas, são artistas influenciados pelas HQs do Crumb, Freak Brothers, pela literatura beat dos anos 50, Ginsberg, Kerouac, e essa identificação gerou a parceria que segue até os dias de hoje, e que serviu como base para a construção de “A Cidade dos Piratas”.

“Laerte foi generosa em relação ao nosso filme: mesmo não querendo aparecer, se dispôs a gravar as cenas onde ela foi entrevistada por nós e ajudou na liberação dos direitos dos vários programas, de suas participações em diversos canais de TV”, diz Guerra, que completa: “Ela incentivou a troca do roteiro original, no qual só os Piratas atuavam, pela versão em que os Piratas, ela e seu novo universo eram protagonistas. No início ficamos perdidos em meio ao labirinto que foi criado e isso reforçou muito a atualidade do nosso filme, trazendo questões que estão e ainda vão ser vanguarda dos questionamentos, de como chegamos na beira do abismo.”

Ao convidar Matheus Nachtergaele e Marco Ricca a emprestarem suas vozes aos personagens, o diretor busca ampliar a dimensão contestadora e existencialista do filme, que retrata um processo de aceitação de desejos e de afetos, com a história de um homem que flerta com a cultura transexual. “Matheus é um ator que parece ser a própria personagem, sempre. E mais, ele facilmente capta a emoção da cena e faz tantas e tantas opções que chega a deixar o diretor de dublagem tonto. Gênio vivo entre nós. Já Marco Ricca tem aquele estigma do mau. Tínhamos o papel do político homofóbico e paranoico, ele era o cara perfeito para o papel.”, explica o diretor.

“A Cidadade dos Piratas” foi exibido em diversos festivais no Brasil e América Latina, foi o vencedor do prêmio de Melhor Roteiro e Melhor Direção no Festival de Cinema de Vitória de 2018, recebeu Menção Honrosa no 46º Festival de Cinema de Gramado e foi eleito o Melhor Filme do Anima Latina, realizado em Buenos Aires no último ano, e do Mumia 2018

 Leia a seguir entrevista com Laerte:

Laerte, você tem  alguma referência de  moda? Qual seu estilo?

Difícil dizer. Quando eu comecei a usar material feminino, fazia isso com muita cerimônia, usava coisas de senhoras de romance antigo. Depois fui soltando a franga.

Gosto de umas coisas meio de hippie, saias grandes e coloridas. Sem cor também. Gosto de bijuteria, bolinhas coloridas. Não sei.

Como foi sua relação de trabalho com relação ao Otto Guerra em A Cidade dos Piratas?

Acho que praticamos todo o kama sutra do relacionamento de produção de filme. Fiz argumento, palpitei em roteiro, fiz gravações, desenhei, e vice-versa. Foram muitos anos de história.

Qual sua opinião sobre a política brasileira atual?

Mais que uma opinião, tenho intenções e faço parte de projetos. Sobre o Bolsonaro [Jair, presidente], acho que meu trabalho tem sido claro o suficiente. 

De onde vem sua inspiração para os desenhos incríveis que faz?

Não é inspiração. É um modo de agir.

Seu último  filme lançado na Netflix, “Laerte-se”, teve 91%  de aprovação pelo público, como foi essa parceria, pode contar para gente?       

Bárbaro! Nessa parte de contar como foi, melhor vocês perguntarem para as diretoras do filme – Lygia Barbosa e Eliane Brum, elas podem explicar melhor que eu.

Procuramos, então, Lygia Barbosa para nos contar um pouco como foi esse processo de filmagem com Laerte. Veja a seguir relato da diretora:

“Foi no primeiro encontro numa padaria de São Paulo que tudo começou. A ideia de fazer um filme sobre uma história que ainda ia acontecer com Laerte Coutinho era no mínimo o maior desafio da minha carreira.  Ali começava um filme sem roteiro, sem pesquisa, sem saber o que viria pela frente. Como fazer?

Com Eliane Brum fomos descobrindo este caminho. Trabalhamos juntas pela primeira vez e construímos também nossa história. Não queríamos estabelecer regras, buscamos desconstruir padrões. Conversamos longas horas nos questionando como seria. Respeitamos nossos espaços e juntas entramos no espaço, na casa, na vida de Laerte. Ganhamos confiança entre nós três.

Durante três anos fui conhecendo Laerte e Laerte me conhecendo. Quando não filmava com Eliane, filmava a maior parte do tempo sozinha, sem equipe. Não daria para ser de outro jeito, se o que buscávamos era intimidade e o que ainda não havia sido dito por ela depois de tanta exposição na mídia. Foram dias divertidos, às vezes tensos, às vezes eu incomodava, às vezes me sentia incomodando. Havia dias que Laerte não queria filmar, havia dias que batia aquela incerteza se eu conseguiria fazer o filme. Teve dia que voltando para casa parei o carro e chorei de emoção porque, enquanto filmava, não podia. Também houve dias em que não filmei, mas carregamos caixas, conversamos, fomos ao supermercado, fizemos as coisas normais da vida.

Foram histórias paralelas, a gente com Laerte e a gente com a gente. Depois a gente com produtor, roteirista, editor, maestro, editor de som, animador, gravadoras etc. Muitos acontecimentos com vitórias e derrotas.

Não é fácil construir, desconstruir, desatar os nós e tecer uma historia. Escolher os momentos e pensamentos de tudo que gravamos durante estes três anos para contar um pequeno fragmento da vida de Laerte exigiu de mim tudo aquilo que apreendi na vida.”

Colaborou Elias Oliveira.

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