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A Dinamarca vai ao México: o incrível projeto do chef Rene Redzepi do restaurante Noma!

Por João Grinspum Ferraz

A Dinamarca vai ao México: ou quando os mexicanos encontraram seus Skraelings 1.

Cajus hei de chupar, mangas espadas
Talvez pouco elegantes para um poeta
Mas peras e maçãs, deixo-as ao esteta
Que acredita no cromo das saladas

(Vinicius de Moraes) 2.

Cozinheiros, garçons e lavadores de prato participaram de uma migração temporária que envolveu cerca de 150 pessoas, transferindo o premiado restaurante dinamarquês para a cidade de Tulum, à beira do mar caribenho. Ali, apoiado por recursos hoteleiros, foi construído um restaurante novo desde o princípio, com equipamentos próprios para realizar a inventiva cozinha de Redzepi e, ao mesmo tempo, considerando os métodos locais de cozinha com fogo. Ali parece haver mais tecnologia empregada nas soluções construtivas de fogões à lenha, fornos e churrasqueiras do que em moder nos aparelhos eletrônicos cuja utilização não se vê. Respeitando o clima e a natureza, a arquitetura do restaurante se adaptou à situação e aos métodos construtivos da região, naquilo que poderia se chamar a “L’Anse aux Meadows” da gastronomia contemporânea. Em referência ao nome dado ao primeiro povoado europeu es tabelecido pelos Vikings na costa norte americana, quase 500 anos antes da chegada de Cristóvão Colombo – cujas ruínas foram encontradas em 1960.

Em tempos de globalização e cosmopolitismo, em que frequentemente realidades regionais sofrem com a imposição de um modo de consumo – e, em última instância, um modo de viver – que atropela culturas, práticas e realidades humanas, o estabelecimento temporário do restaurante dinamarquês na terra mexicana se dá com intuito contrário. O Noma está ali para aprender: conhecer e estudar. Redzepi se coloca diante da hercúlea tarefa de combinar de um lado o ímpeto exploratório dos viajantes europeus dos séculos XVIII e XIX, que foram às Américas em busca de uma nova realidade, de sua fauna e flora, e que a registraram e a exibiram para o público do velho continente; e, de outro, o ímpeto criativo dos artistas modernistas, que diante do diferente, da perspectiva da alteridade humana e natural, buscaram incluir em suas criações os novos elementos, atribuindo-lhes o mesmo valor e importância que atribuíam aos seus próprios signos. O Noma tenta fazer, com os ingredientes e técnicas que encontrou, um esforço análogo ao que Picasso fizera com as máscaras africanas em Les Demoiselles d’Avignon (1907), ou o que fizera Brancusi com suas esculturas totêmicas, que combinavam signos de inspiração africana, grega e latina.

 

          Há ainda um elemento fundamental a se considerar: o mercado global e a velocidade da comunicação na sociedade contemporânea. Entremeados sociais eletrônicos, criados por computadores, aparelhos telefônicos e afins reproduzem de maneira instantânea quase tudo que ocorre em outra parte. Soma-se a isso o fato de os principais cozinheiros hoje terem se tornado figuras que extrapolam o universo da gastronomia e que habitam o mundo do comportamento e da mídia. Se o chef Ferran Adrià, com seu restaurante El Bulli, transformou-se em um fenômeno análogo aos Beatles (guardadas as devidas proporções), ao romper a barreira de seu próprio mundo e habitar o imaginário de pessoas que pouco ou nada conhecem sobre o universo da alta gastronomia, Rene Redzepi é hoje uma 3 das grandes estrelas da constelação de cozinheiros que habita documentários, programas de televisão, matérias da mídia impressa e todo o mundo virtual.

Ao realizar sua empreitada mexicana, Redzepi lida com o fato de que hoje, por si só, o Noma atrai um turismo gastronômico que viaja o mundo e lota o restaurante por conta de sua comida. É com esse elemento que Redzepi dá o passo mais ousado em sua iniciativa no Noma México: apresentar os elementos regionais como alternativas de resistência ao mercado global e sua lógica de consumo. Nesse sentido, oferece ao comensal comidas pouco conhecidas – ou pouco valorizadas – mundo afora como ingredientes tão luxuosos quanto uma trufa ou um pedaço de foie gras. Em um prato com caviar, por exemplo, é o coco verde e a textura de “gel” de seu interior que é apresentada com surpresa e requinte. Se esta tarefa já vem sendo realizada por cozinheiros como Alex Atala e Virgílio Martinez em seus países, parece fundamental esse segundo passo, no qual um membro do mais alto círculo da gastronomia do velho mundo reconhece e incorpora estes ingredientes respeitando seu processo criativo, sem apelar para o folclore ou para o pitoresco.

Em um mundo onde o consumo desenfreado molda a cidadania, e os artigos globais de luxo – sejam as grandes marcas, sejam os ingredientes famosos de um restaurante – moldam um ideal a ser perseguido por toda a população, identificar valor em outras formas, em outras coisas, é uma atitude de resistência. Resistência contra a crescente produção de lixo e de desperdício, resistência contra as emissões de gás carbônico e resistência contra o uso predatório de nosso meio ambiente: não há a real possibilida de de todo o mundo consumir as mesmas coisas sem que com isso ele se destrua – seja com a extração irresponsável ou seja com as culturas vegetais e animais que utilizam de químicos e processados que arrasam o meio ambiente. Além disso, há que se resistir a esse modelo social piramidal, no qual os indivíduos se dividem em todo o mundo pela sua renda e capacidade de consumir artigos de maior ou menor luxo em uma sociedade de classes. Nesse sentido, encontrar o valor das coisas em suas expressões regionais é uma brava tentativa de expandir as fronteiras da cultura contemporânea.

Há também de se ressaltar, em um mundo que se divide cada vez mais entre um modelo homogeneizante e impositivo do mercado global e os focos de resistência regionais, culturais e étnicos, a importância da possibilidade de uma resistência cultural intercruzada. Ou seja, embora haja uma grande importância nos movimentos culturais afirmativos, de expressão regional, étnica e racial, que buscam lugares de fala e de existência em um mundo que os sufoca; deve haver também a possibilidade de que grupos culturais distintos se protejam e se valorizem em uma operação cultural sinérgica, compondo novas redes de diálogos, trocas culturais e mesmo econômicas. Uma direção terceira que se situe entre o isolacionismo combativo e o cosmopolitismo homogeneizante. Vale lembrar que a humanidade se construiu do modo como se conhece hoje através de grandes movimentos de intercâmbio cultural: as línguas, a ciência, as comidas e mesmo a filosofia circularam pelas mais diversas mãos ao longo dos séculos: desde o Extremo Oriente, passando pelo Oriente Médio, Europa e Américas, compondo um emaranhado complexo e multidirecional, cujos produtos são infinitos. O escritor Marcel Proust recorda essa relação, ao lembrar que “as palavras francesas que temos tanto orgulho em pronunciar corretamente não passam por sua vez de erros cometidos por bocas gaules as que pronunciavam atravessado o latim ou o saxônio, não passando a nossa língua da pronunciação defeituosa de algumas outras” 4.

          Por outro lado, deve-se lembrar de que a viagem de Redzepi ao México é um gesto pequeno diante da avassaladora realidade que marcha em direção contrária. Em primeiro lugar por ser um jantar caro, cujas reservas foram esgotadas em poucos minutos, sendo assim restrito a um pequeno público com condições materiais de participar. Para além de sua abrangência restrita, não existe ali qualquer tentativa de salvar o planeta de sua hecatombe, nem tampouco de reformar a humanidade, que muitas vezes parece caminhar em direção à barbárie. O que há é um pequeno exemplo de como pode-se realizar uma atividade comercial, dentro do mercado da alta gastronomia – com todos os seus defeitos e virtudes – que valorize diferentes realidades e traga à tona alternativas. E para isso, Redzepi tem apostado no poder de amplificação das redes sociais, não só para registrar e publicizar o esforço realizado nessa empreitada, mas também para mostrar diferentes produtos da fauna e da floramexicana. Sim, não há a clara intenção de romper com a sociedade capitalista, mas sim de procurar soluções diferentes aos problemas e questões existentes neste ramo em todo o mundo. Há também o evidente atrativo comercial e de marketing de uma empreitada como essa, mas isso é parte necessária dentro da sociedade de mercado. O fundamental no gesto é sua simbologia, por vezes a importância do plano simbólico extrapola a dimensão do gesto em si. É nesse sentido que Redzepi age, na direção da criação de uma polifonia, no mesmo sentido que Jean Starobinski usa para definir a essência da modernidade – como lembra Marc Augé –: “A possibilidade de uma polifonia onde o entrecruzamento virtualmente infinito dos destinos, atos, pensamentos e reminiscências pode basear-se numa marcha de baixo que soa as horas do dia terrestre e que marca o lugar que aí ocupava (e ainda poderia aí ocupar) o antigo ritual”. 5.

Não menos importante e marcante é o fato de que a comida combina todo o perfil criativo e técnico de Redzepi, e de seu Noma, reproduzindo a lógica criativa e conceitos desenvolvidos em seus quase 15 anos sem, no entanto, apenas adaptar os pratos já existentes à realidade e ingredientes do local. Uma pesquisa significativa e um trabalho de criatividade foram empreendidos nos meses anteriores à abertura do restaurante no México. O resultado é um menu degustação em 15 etapas, cuja lógica criativa e técnica não foge à essência do restaurante em Copenhague.

Não há, também, concessão ao folclore ao abordar a comida e os ingredientes mexicanos: se as massas de tacos e tostadas são preparadas por mulheres mexicanas especializadas, é pelo reconhecimento de sua qualidade intrínseca – os recheios são fruto da criatividade dos cozinheiros do Noma -: aproveita-se o instrumento existente na criação de novas combinações. Há, sim, um certo deslumbre com as frutas, por exemplo, que, se não são incomuns para um habitante dos trópicos, são quase desconhecidas para alguém vindo do norte da Europa. Ainda assim, nesse caso, há também um alento: o uso que se faz delas pode mostrar novos usos e caminhos para a utilização de ingredientes que, por vezes, ficam restritos à sua utilização na cozinha popular e tradicional, e pouco aparecem dentro da cozinha criativa contemporânea. Tudo é feito com respeito e beleza. O Noma nos propõe aquilo que Proust descreve como a “única viagem verdadeira, o único banho de Juventa seria não partir em demanda de novas paisagens, mas ter outros olhos, ver o universo com os olhos de outra pessoa, de cem pessoas, ver os cem universos que cada uma delas vê, que cada uma delas é”.

Notas:
1. Skraelings é o termo usado pelos povos Vikings para se referir aos estrangeiros da Groelândia e da América do Norte. Tem significado análogo a bárbaro ou estrangeiro.
2. MORAES, Vinicius de. Não comerei da alface a verde pétala, 1962.
3. Entrevista captada no dia 03/05/2017.
4. PROUST, Marcel. Sodoma e Gomorra. São Paulo: Globo, 1998. p.136
5. AUGE, Marc. Não-Lugares. Papirus. p. 71.
A série gastronômica “Retratos” dessa semana traz uma entrevista exclusiva com o chef Rene Redzepi, play aqui:

 

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